sexta-feira, 30 de março de 2012

Chique demais!



“_ Uai, gente, então ocê tá chique demais, sô!”
Não me contive, mesmo me apressando horrores pra chegar logo a tal exposição. Voltei os olhos, rapidamente, e vi “o” senhor negro que sempre, sempre se coloca na porta daquele hotel chique pedindo ajuda das pessoas que por ali passam, uma cadeira de rodas motorizada (aparentemente nova) e o dono da tal frase.
Olhei pros três, ainda em movimento, e ouvi uma tentativa de resposta, absurdamente singela, cujo conteúdo só poderia reproduzir assim:
_ “Um olhar brilhante e absurdamente feliz”.       
            Pisquei os olhos e ouvi como resposta a esse olhar:
“ _ Então ele é seu amigo mesmo, hein!!!???”

Segui meu caminho pensando fortemente nesse lance de ser chique e concluí, ainda apressada: chique mesmo é ter dignidade. Fora isso, são apenas tentativas inúteis de despistar uma fome de amor, de afeto, de felicidade que joia alguma, carro nenhum, nem exposição de arte são capazes de sustentar por muito tempo. Mas que, irônico e lindamente, uma cadeira de rodas motorizada pôde, sim, saciar.

sábado, 24 de março de 2012

Amoras maduras

Banksy, artista inglês

Caramba! Um pé de amora! — disse, em voz alta e com os olhos vidrados no que, para ela, era mais do que um retorno às lembranças de sua infância.

Mas também se lembrou do risco que envolveria lançar-se... Foi inevitável recordar os conselhos da mãe que mencionava, uma e outra vez, sobre os perigos. Manchas que não sairiam das roupas e o castigo certeiro por não tomar cuidado.

Sim, havia perigo. Compreendia bem. Mas desistir não era tão simples. Não se tratava de uma fruta, apenas. Era um chamado. Quase uma intimação.

Experimente ficar incólume diante de um pé de amoras maduras. Experimente não se esquivar diante dessa fragilidade negra que, de tão intensa, captura nossa atenção, a ponto de nos fazer esquecer qualquer risco — pensava, também em voz alta.

Reuniu um pote delas e, a despeito da mancha no vestido, sorria satisfeita com o pequeno troféu que reunira em suas mãos, a custas de galhas esticadas e quebradas e da  perda de outras tantas amoras que despencaram, inevitavelmente, no chão. Uma à milanesa repugnante. Tesouro agora vulnerável, e não mais desejado.

Por um momento ínfimo, pensou em si e nas tantas vezes que desejou. Nas tantas vezes que evitou se manchar. Nas inúmeras ocasiões em que, mesmo se lançando e esticando braços, mãos e sonhos, só conseguira estar cada vez mais distante do objeto do seu querer.

Mas, no caminho de volta à sua casa, o inevitável: metade do pote, após um movimento não-calculado, se viu espalhado entre os bancos do automóvel novo.

Recolhendo-as com cuidado e com um silêncio piedoso, ouviu do filho pequeno: — Não tem problema não, mamãe. A culpa não foi sua. Sabe de quem foi? Da dona do pé de amora.

Rindo contidamente, continuou limpando as manchas espalhadas pelo chão, apertando, com força, os lábios, na tentativa de recuperar o sabor da última amora que esteve em sua boca.

domingo, 18 de março de 2012

2 em 1

           Antonio Poteiro, pintor brasileiro

          Outro dia desses, fiquei passada com um comentário de um cara com quem eu estava “ficando”. Estávamos aqui em casa. A pia, cheiinha de vasilhas sujas. Ele olhou pra ela e disse, com a maior naturalidade do mundo: — Nossa!!! Que bagunça!!!
Se não fosse toda a experiência de vida que já tenho, o fato de ele ser um completo idiota e a estratégia 2 em 1 que uso pra otimizar meu tempo, me crucificaria por passar por aquela situação.
E é justamente sobre essa estratégia que quero falar. Porque ando percebendo que a frase “não tenho tempo”, quase sempre “inargumentável”, já virou a desculpa oficial pra justificarmos as visitas que deixamos de fazer, os amigos que não encontramos, a família que só vemos em velórios e casamentos, os abraços adiados, os carinhos que protelamos...
Por isso, fico aqui matutando sobre a lógica do certificado ISO. O de “qualidade total”. Empresas — especialmente as particulares — buscam, incansavelmente, obter essa certificação porque, com isso, transmitirão aos seus clientes ideias como eficiência, seriedade, rapidez, qualidade. Tudo o que o cliente deseja. Tudo o que torna a relação entre empresas e consumidores mais consolidada e fortalecida.
E foi aplicando essa mesma dinâmica empresarial em minha vida doméstica que poupei de mandar o tal “ficante” “praquele lugar”, por achar que eu era uma porquinha.
Não! Só lavo minhas vasilhas (independentemente de serem do café da manhã, da tarde, da janta, do almoço) no momento em que faço comida pra mim. Ao meio-dia. Enquanto me dedico a cozinhar (cortar, refogar, mexer, vigiar...), deixo tudo lavadinho.
É que sempre me seduziu a ideia de fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo. Fazer uma hidratação no cabelo enquanto dou uma geral na casa. Ler dentro do ônibus. Aproveitar a água da máquina pra lavar a entrada da casa, o terreiro, os banheiros, o chão da cozinha. Ler jornais em Espanhol, pra saber notícias sobre o Brasil (assim, me mantenho informada e exercito o idioma estrangeiro). Lavar o box do banheiro enquanto tomo banho, etc., etc., etc....
 Por tudo isso, outro dia desses, não hesitei e me decidi:
— Oi...
— Boa tarde!
— O que você vai fazer hoje?
— Mmmm.... Não sei...
— Cortar, escovar, pintar, hidratar...?
— ...
— ???
— ...
— ???
— Assim. Qualquer coisa que faça passar essa vontade que estou sentindo de morrer. Entende?
— !!!!!!!... Uma hidratação???
— Pode ser...

Mas seria surpreendente se utilizássemos a lógica 2 em 1 não somente para as coisas práticas, mas também para nos tornarmos mais humanos e não sucumbirmos diante da solidão, da falta de amor, da ausência de afeto...
Como posso comemorar a vida ao lado de alguém que gosto, sem que, pra isso, seja necessário encontrá-lo no dia de seu aniversário? Inclusive pra não ter que lidar com comentários do tipo: “Fulano só nos visita quando tem festa”, “Ciclano só liga pra pedir algum favor”, “Beltrano só é carinhoso quando precisa de dinheiro”...
Na esteira da estratégia 2 em 1 — podem rir (eu deixo!) — me vem a lembrança de um álbum de figurinhas que eu juntava nos anos 80: “Amar é...”. Tratava-se de uma reunião de frases que definiam o que era amar. Meigamente ilustradas por um casalzinho peladinho. Bunitinho, ele; viu?!
Nostálgica, não poderia, então, deixar de dividir com vocês algumas humildes sugestões, na tentativa de ver se a gente consegue deixar de tomar antidepressivos ou fazer terapias e livrarmos nossas tensões no colo de quem a gente gosta. Em outras palavras: pôr a estratégia 2 em 1 a favor do amor, da amizade, do afeto.
Lá vai:
1. Colocar a TV no mute (10 minutos; por Deus!!!), quando o ser que amamos chegar da escola, do trabalho, da rua..., pra poder fazer aquela pergunta besta, porém tão essencial: “— E aí?! Como foi seu dia?”;
2. Tomar banho a dois (mesmo que o banheiro seja daqueles microscópicos da MRV), com a desculpa de esfregar as costas de quem a gente gosta, só pra incrementar e (variar) os momentos de intimidade;
3. Ver um programa de TV juntos, mesmo que seja luta livre ou a danada da novela das oito;
4. Aceitar o convite de um amigo pra almoçar em sua casa, mesmo que o cardápio seja omelete. Afinal, o que está em jogo é menos a qualidade do prato que o fortalecimento dos laços de amizade; não é mesmo?!
5. Ver uma partidinha de futebol (mesmo que seja do América!!!) com aquele tio seu, com quem você quase não conversa, só pra não perder a chance de trocar umas palavrinhas com ele e, assim, expressar o quanto você se importa. Você pode aproveitar pra cortar e lixar as unhas;
6. Ver a novela das oito (pros que acham que estou fazendo uma apologia contra esse “inofensivo” aparelhinho doméstico) pertinho das nossas mães, pra não perdermos o contato íntimo e maravilhoso — e tão necessário!!! — com elas. E aproveitar o comercial pra fazer fofocas sobre a família (inevitável; não?!), marcar outros almoços, outros encontros. Outras oportunidades de dar e fazer cafunés. De amar e ser amado;
7. Pedir ao sobrinho de 5 anos pra te ajudar a regar as plantas. Pobrezinhas! Morrem de sede; sabe?! Duvido que ele se recuse! Enquanto isso, aproveitar e perguntar sobre a escolinha, os amiguinhos, o Ben 10, os Power Rangers... Rsrsrs...;
8. Aceitar ver um filminho em Espanhol com sua esposa. Ela aperfeiçoa o idioma e, você, a sua capacidade de motivá-la a seguir adiante.

Esses oito inocentes conselhos não têm nada a ver com fazer uma coisa pelo outro pra, no futuro, poder fazer o que se gosta sozinho. Mas fazer juntos, na medida do possível, o que cada um gosta em sua individualidade. No final das contas, a gente verá que relativizar nossas exigências, necessidades, preferências, em favor do convívio, poderá tornar nossas existências menos solitárias e muito mais interessantes.
Ao menos não precisaremos ir ao salão de beleza pra que alguém mexa em nossos cabelos e nos acalme tal como o seio que o filho busca, faminto, sem perceber que encontrará, ali, muito mais que um simples alimento. 

sábado, 10 de março de 2012

Chaga

Pierre Matter, escultor francês


Quando era criança não entendia como minha mãe era capaz de, vendo uma fruta apodrecendo, dizer: “dá pra comer!!!”. Chegava a sentir náuseas, mesmo ela me assegurando que eliminando a parte estragada, poderíamos comê-la sem problemas.
A parte pelo todo. Sensação metonímica. Acho que era isso o que eu sentia. Via a parte feia da coisa e automaticamente considerava o todo digno do meu desprezo, do meu não apreço.
Não dava. Eu não comia.
            Hoje, na fase adulta, me deparo com tomates a cinco reais o quilo. E me indigno! Como assim cinco reais??? E me vejo, naturalmente, ressignificando coisas.
No último final de semana, por exemplo, voltando de uma cachoeira, vi um galho dourado no chão que interrompeu altivo minha caminhada. Não! Não era um galho seco. Aquilo era o objeto de decoração que precisava prum cantinho ocioso da minha casa. Ao vê-lo, me lembrei do que sobrara de uma orquídea linda que ganhei de uma amiga: apenas o vaso com suas raízes secas causadas pela morte compulsória ocasionada pelos mais de trinta dias que fiquei fora de casa.
            Junto com uma amiga, aproveitei o contexto, me agachei e recolhi sorridente uma série de pedrinhas brancas que dariam o toque final da obra de arte que acabara de, mentalmente, montar: o que sobrara de um presente de uma amiga querida, uma recordação de um passeio feliz com a família e uma amiga numa cachoeira bonita de Diamantina e um punhado de pedras (centenas delas) com as quais nos deparávamos no meio do caminho.
            O resultado dessa união de coisas mortas, dignas, talvez, em outras circunstâncias, de terminarem no lixo foi um enfeite bonito que construí pra minha casa.
            Não pretendo, com isso, dizer que passei a entender a lógica da minha mãe que é também, venho constatando isso mais e mais a cada dia, a mesma daqueles cujas coisas não caem do céu: retirando o podre, claro!, pode-se ...
Continuo achando isso muito estranho ainda. Continuo tendo dificuldades para  controlar meus instintos assassinos e não oferecer o lixo como único fim para aquilo que, em um dado momento, se mostra, para mim, repugnante. Mesmo que somente uma pequena parte sua. Menos de dez por cento do que é.
            E falando nisso tudo, penso muito na tolerância... Penso muito nela. Nessa capacidade que alguns têm em esperar. Esperar pra ver se a ferida se alastra realmente. Esperar pra ver se vale a pena confiar no outro. Esperar pra ver as coisas melhorarem. Afinal, a gente não encontra tudo pronto e é preciso, muito dizem, saber esperar. Quem tem a perspicácia de olhar pra chaga purulenta e ver possibilidade de vida. Vindoura, presente, passada.... De olhar pra algo morto (morto???) e lhe dar utilidade, lhe dar chance. Tempo.
            Tempo pra ver florir, por exemplo, um pedaço mixuruca de uma flor que minha mãe disse se chamar beijo. E ela, a mesma que ainda insiste em que eu não elimine uma verdura, legume ou fruta por identificar manchinhas escuras ou partes amolecidas pelo tempo, olhando pro tal raminho, decretou sem dó nem piedade: “beijo não pega assim, minha filha”. “Vai morrer!”
            Olhando, quinze dias depois, pro tal raminho (agora um pouco menos mixuruca, mas vivo) da tal plantinha... olhando para o enfeite que montei e vigiando para que meus alimentos não se decomponham antes que eu os coma, concluo sem muito vacilar: preciso ler poesia todos os dias... Poesia pra suportar, ver e construir vida em torno de mim. O tempo todo. Todo o tempo.