quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Detalhezinho

Pierre Matter, escultor francês

Precisava de um computador e internet pra trabalhar. Um básico, sem o qual não conseguiria sair do lugar.

Poucos meses depois percebeu que necessitava mesmo era de um computador portátil relativamente leve que coubesse em bolsas, mochilas ou sacolas (sem precisão daquela cerimônia mortuária pra guardar cabos num lugar, computador noutro....) e uma boa conexão de internet.

Avançando um pouco mais notou que tinha necessidade de relativo silêncio (tudo bem se os pinschers da vizinha vez ou outra se engalfinhassem), luz amarela fluorescente e pés aquecidos (por meias comuns, no início, mas mais adiante, por sapatinhos de lã que também existiam pra adultos, naquela lojinha do Beco da Tecla, e que a deixavam verdadeiramente mais feliz).

Superadas essas etapas, vinham outras cujas sutilezas a deixavam, vez por outra, estupefata: o cactus ficaria melhor no lugar daquele banco que, na verdade, precisava mesmo era ficar próximo ao sofazinho para que houvesse lugar onde apoiar xícaras, copos, lanchinhos, enquanto trabalhasse.

Dito assim parecia que uma coisa desencadeava outra, numa lógica linear e crescente, cujo resultado não poderia ser outro senão a satisfação.

Nada disso.

Tudo isso só podia ser construído por uma linha sutil que só a delicadeza do olhar que avalia pra salvar dá conta de tecer. Costura necessária, diária, infinita capaz de produzir felicidade, por exemplo, aproveitando garrafa de vidro de suco de uva pra transformá-la em recipiente pra guardar leite na geladeira, desdobrando isso na beleza do contentamento de ver a cor do alimento anos a fio escondido pelas embalagens tetra pak.

Mas o silêncio que afirmava precisar também tinha que vir de dentro. E assumiu que, antes, urgia descobrir o que teria que comprar, buscar, superar, esquecer... ou, ao que teria que se dedicar. A parada aí sempre era longa e trazia, obviamente, uma série de aprendizados e, junto com eles, uma lista de coisas que precisava providenciar, fazer, cuidar, reler, descartar...

Da luz amarela fluorescente retirava um pouco de calor nos intermináveis dias frios de sua cidade, a despeito de não convencer muito que isso efetivamente aquecia. Mesmo insistindo na argumentação de que a branca remetia a hospitais e que casa tinha que ter mais jeito de ninho que de consultório de dentista.

Quanto aos pés aquecidos, gostou de verdade da felicidadezinha que sentiu ao ver amarrada à etiqueta de uma blusa um envelopezinho feito de papel manteiga e, dentro dele, um botão e um pedaço significativo de linha branca. Se o botão se soltaria ou não da prenda de roupa comprada, pouco importava. E não importava não porque isso fosse irrelevante (aliás, quando o tema é roupa sem botão na hora de sair, todo mundo sabe bem a chateação que é), mas porque esse detalhezinho lhe abria outras tantas possibilidades: a de pensar em consertar suas próprias roupas (mais ainda, de ficar atenta se elas precisavam ser reparadas), a de guardar esse botão em um lugar no qual, quando realmente precisasse, dele se lembraria...

Quantos aos pés, eles continuavam gelados, mesmo depois das duas meias que pusera. Mas se sentia deveras aquecida por se dar conta que havia outros seres espalhados por aí que lidavam com coisas cotidianas de um jeito mais humano. Por ora, isso era suficiente.

Mas um lampejo de pessimismo quase destruiu suas divagações polianescas: e se dedicássemos esse filosofar no cuidado de gente? Será que precisaríamos de toda essa burocracia de coisas pra sermos felizes?

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Ao pé da letra

Alexey Bednij, fotógrafo russo

Não se tratava de um jogo. Era vida marcada em brasa por uma infinidade de sonhos perdidos, desvios de trajetos, encruzilhadas de planos cujas decisões clamavam por nãos insólitos em meio à fugacidade de certos prazeres que duravam menos tempo que o cheiro de sexo que cansou de impregnar mãos e bocas.

Contra isso pouco podia fazer. O certo seria terem lhe advertido antes de se lançar nessa busca insana e anacrônica pelo bom moço que lhe salvaria da solidão, da tristeza, da opressão por duas tranças ou por um pé de sapato.

O conto agora era outro. A mocinha, super descolada, sabe exatamente o preço, quase sempre alto demais, pra que um galegozinho de barbicha rala lhe alce uma espada e ela, fingindo uma fragilidade que nunca teve, se sinta, durante alguns parcos minutos a mulherzinha amada para sempre das histórias novelescas ou de encantamento cultivadas pelo imaginário de sua geração. E das posteriores, infelizmente.

Balela.

Diante de um mercado inflacionado em todos os sentidos, pretender atitudes coerentes por parte de semideuses, porque, claro, muito são o tesão encarnado em muques, pelos e sêmen, é, sem dúvida, uma tremenda estupidez. Quase como entrar na cabine daquele programa do Silvio Santos e trocar uma Hillux por uma banana caturra.

Mas se mais vale um gosto... Vai minha filha! Vai!

Vai se fuder! Ao pé da letra.