sábado, 10 de março de 2012

Chaga

Pierre Matter, escultor francês


Quando era criança não entendia como minha mãe era capaz de, vendo uma fruta apodrecendo, dizer: “dá pra comer!!!”. Chegava a sentir náuseas, mesmo ela me assegurando que eliminando a parte estragada, poderíamos comê-la sem problemas.
A parte pelo todo. Sensação metonímica. Acho que era isso o que eu sentia. Via a parte feia da coisa e automaticamente considerava o todo digno do meu desprezo, do meu não apreço.
Não dava. Eu não comia.
            Hoje, na fase adulta, me deparo com tomates a cinco reais o quilo. E me indigno! Como assim cinco reais??? E me vejo, naturalmente, ressignificando coisas.
No último final de semana, por exemplo, voltando de uma cachoeira, vi um galho dourado no chão que interrompeu altivo minha caminhada. Não! Não era um galho seco. Aquilo era o objeto de decoração que precisava prum cantinho ocioso da minha casa. Ao vê-lo, me lembrei do que sobrara de uma orquídea linda que ganhei de uma amiga: apenas o vaso com suas raízes secas causadas pela morte compulsória ocasionada pelos mais de trinta dias que fiquei fora de casa.
            Junto com uma amiga, aproveitei o contexto, me agachei e recolhi sorridente uma série de pedrinhas brancas que dariam o toque final da obra de arte que acabara de, mentalmente, montar: o que sobrara de um presente de uma amiga querida, uma recordação de um passeio feliz com a família e uma amiga numa cachoeira bonita de Diamantina e um punhado de pedras (centenas delas) com as quais nos deparávamos no meio do caminho.
            O resultado dessa união de coisas mortas, dignas, talvez, em outras circunstâncias, de terminarem no lixo foi um enfeite bonito que construí pra minha casa.
            Não pretendo, com isso, dizer que passei a entender a lógica da minha mãe que é também, venho constatando isso mais e mais a cada dia, a mesma daqueles cujas coisas não caem do céu: retirando o podre, claro!, pode-se ...
Continuo achando isso muito estranho ainda. Continuo tendo dificuldades para  controlar meus instintos assassinos e não oferecer o lixo como único fim para aquilo que, em um dado momento, se mostra, para mim, repugnante. Mesmo que somente uma pequena parte sua. Menos de dez por cento do que é.
            E falando nisso tudo, penso muito na tolerância... Penso muito nela. Nessa capacidade que alguns têm em esperar. Esperar pra ver se a ferida se alastra realmente. Esperar pra ver se vale a pena confiar no outro. Esperar pra ver as coisas melhorarem. Afinal, a gente não encontra tudo pronto e é preciso, muito dizem, saber esperar. Quem tem a perspicácia de olhar pra chaga purulenta e ver possibilidade de vida. Vindoura, presente, passada.... De olhar pra algo morto (morto???) e lhe dar utilidade, lhe dar chance. Tempo.
            Tempo pra ver florir, por exemplo, um pedaço mixuruca de uma flor que minha mãe disse se chamar beijo. E ela, a mesma que ainda insiste em que eu não elimine uma verdura, legume ou fruta por identificar manchinhas escuras ou partes amolecidas pelo tempo, olhando pro tal raminho, decretou sem dó nem piedade: “beijo não pega assim, minha filha”. “Vai morrer!”
            Olhando, quinze dias depois, pro tal raminho (agora um pouco menos mixuruca, mas vivo) da tal plantinha... olhando para o enfeite que montei e vigiando para que meus alimentos não se decomponham antes que eu os coma, concluo sem muito vacilar: preciso ler poesia todos os dias... Poesia pra suportar, ver e construir vida em torno de mim. O tempo todo. Todo o tempo.

2 comentários:

  1. Chaga
    (adaptação de coisa roubada de uma crônica)

    Canetas velhas... tintas recentes, frescas... pingos apenas nos iiiii(s)... folhas ainda pela metade (tenho esperança de nunca derramar de uma só vez mais do que dez por cento do que há no tinteiro). Mas planto beijinhos! E leio poesia todos os dias!

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  2. Não sei onde eu deveria escrever isso, para que você lesse ainda hoje. Se fosse possível, queria que estivesse bem ao lado da Marina... Abramovic

    À mostra

    Quis antes falar de poesia.
    Ela, em sua ingenuidade
    (dizia não entender nada de literatura),
    levantou a blusa
    e deixou à mostra os seios.
    Nossa!, os dois versos mais lindos
    que já li.

    Hugo Leonardo
    19h56 / 23.4.12

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