segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Por que?

Clarice Lispector, escritora brasileira



Ninguém disse que seria fácil.

Você pode até optar por abrir mão de todos os seus sonhos, projetos pessoais ou íntimos. Mas isso não a tornará heroína de um tempo em que se exige o máximo de todos (homens e mulheres) a qualquer hora, por qualquer pessoa (conhecida ou desconhecida) em tribunais públicos ou privados.

O que importa mesmo é que de você seja extraída essa força (que todos sabem, mas pouquíssimos reconhecem). De tal modo que mal sobre de você senão essa sensação diária de cansaço, de exaustão. Como se o mundo tivesse que ser construído não em sete dias, mas em apenas um.

E se é bem assim a ilustração de sua vida pessoal, por que assumir com tanta facilidade o lugar do abjeto, do inútil, do desprezível? Se você é capaz de se deslocar tão corajosamente pelos mais fortes, desconhecidos e áridos caminhos?

Por quê?

sábado, 9 de novembro de 2013

Nos(otros)

Escher, artista gráfico holândes


exactos diez días.
días intensos de entrega, presencia, complicidad.
sudor, saliva y semen.

y entre todo la urgencia
del freno, del respiro,
ante la palabra impulsiva que desea asaltar al oído ajeno.

pero en la distancia,
necesaria,
donde nos descubrimos llenos de nosotros mismos
o donde nos ponemos, irremediablemente, frente a nosotros mismos,
percibimos, muy seguros, la urgencia
de un tiempo para nosotros.
para nosotros dos.
unidos.
como sea.

sin que, ni por un segundo, sin embargo
nos perdamos de nosotros
en la indispensable singularidad del yo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Detalhezinho

Pierre Matter, escultor francês

Precisava de um computador e internet pra trabalhar. Um básico, sem o qual não conseguiria sair do lugar.

Poucos meses depois percebeu que necessitava mesmo era de um computador portátil relativamente leve que coubesse em bolsas, mochilas ou sacolas (sem precisão daquela cerimônia mortuária pra guardar cabos num lugar, computador noutro....) e uma boa conexão de internet.

Avançando um pouco mais notou que tinha necessidade de relativo silêncio (tudo bem se os pinschers da vizinha vez ou outra se engalfinhassem), luz amarela fluorescente e pés aquecidos (por meias comuns, no início, mas mais adiante, por sapatinhos de lã que também existiam pra adultos, naquela lojinha do Beco da Tecla, e que a deixavam verdadeiramente mais feliz).

Superadas essas etapas, vinham outras cujas sutilezas a deixavam, vez por outra, estupefata: o cactus ficaria melhor no lugar daquele banco que, na verdade, precisava mesmo era ficar próximo ao sofazinho para que houvesse lugar onde apoiar xícaras, copos, lanchinhos, enquanto trabalhasse.

Dito assim parecia que uma coisa desencadeava outra, numa lógica linear e crescente, cujo resultado não poderia ser outro senão a satisfação.

Nada disso.

Tudo isso só podia ser construído por uma linha sutil que só a delicadeza do olhar que avalia pra salvar dá conta de tecer. Costura necessária, diária, infinita capaz de produzir felicidade, por exemplo, aproveitando garrafa de vidro de suco de uva pra transformá-la em recipiente pra guardar leite na geladeira, desdobrando isso na beleza do contentamento de ver a cor do alimento anos a fio escondido pelas embalagens tetra pak.

Mas o silêncio que afirmava precisar também tinha que vir de dentro. E assumiu que, antes, urgia descobrir o que teria que comprar, buscar, superar, esquecer... ou, ao que teria que se dedicar. A parada aí sempre era longa e trazia, obviamente, uma série de aprendizados e, junto com eles, uma lista de coisas que precisava providenciar, fazer, cuidar, reler, descartar...

Da luz amarela fluorescente retirava um pouco de calor nos intermináveis dias frios de sua cidade, a despeito de não convencer muito que isso efetivamente aquecia. Mesmo insistindo na argumentação de que a branca remetia a hospitais e que casa tinha que ter mais jeito de ninho que de consultório de dentista.

Quanto aos pés aquecidos, gostou de verdade da felicidadezinha que sentiu ao ver amarrada à etiqueta de uma blusa um envelopezinho feito de papel manteiga e, dentro dele, um botão e um pedaço significativo de linha branca. Se o botão se soltaria ou não da prenda de roupa comprada, pouco importava. E não importava não porque isso fosse irrelevante (aliás, quando o tema é roupa sem botão na hora de sair, todo mundo sabe bem a chateação que é), mas porque esse detalhezinho lhe abria outras tantas possibilidades: a de pensar em consertar suas próprias roupas (mais ainda, de ficar atenta se elas precisavam ser reparadas), a de guardar esse botão em um lugar no qual, quando realmente precisasse, dele se lembraria...

Quantos aos pés, eles continuavam gelados, mesmo depois das duas meias que pusera. Mas se sentia deveras aquecida por se dar conta que havia outros seres espalhados por aí que lidavam com coisas cotidianas de um jeito mais humano. Por ora, isso era suficiente.

Mas um lampejo de pessimismo quase destruiu suas divagações polianescas: e se dedicássemos esse filosofar no cuidado de gente? Será que precisaríamos de toda essa burocracia de coisas pra sermos felizes?

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Ao pé da letra

Alexey Bednij, fotógrafo russo

Não se tratava de um jogo. Era vida marcada em brasa por uma infinidade de sonhos perdidos, desvios de trajetos, encruzilhadas de planos cujas decisões clamavam por nãos insólitos em meio à fugacidade de certos prazeres que duravam menos tempo que o cheiro de sexo que cansou de impregnar mãos e bocas.

Contra isso pouco podia fazer. O certo seria terem lhe advertido antes de se lançar nessa busca insana e anacrônica pelo bom moço que lhe salvaria da solidão, da tristeza, da opressão por duas tranças ou por um pé de sapato.

O conto agora era outro. A mocinha, super descolada, sabe exatamente o preço, quase sempre alto demais, pra que um galegozinho de barbicha rala lhe alce uma espada e ela, fingindo uma fragilidade que nunca teve, se sinta, durante alguns parcos minutos a mulherzinha amada para sempre das histórias novelescas ou de encantamento cultivadas pelo imaginário de sua geração. E das posteriores, infelizmente.

Balela.

Diante de um mercado inflacionado em todos os sentidos, pretender atitudes coerentes por parte de semideuses, porque, claro, muito são o tesão encarnado em muques, pelos e sêmen, é, sem dúvida, uma tremenda estupidez. Quase como entrar na cabine daquele programa do Silvio Santos e trocar uma Hillux por uma banana caturra.

Mas se mais vale um gosto... Vai minha filha! Vai!

Vai se fuder! Ao pé da letra.


sábado, 18 de maio de 2013

Rota de viagem

Fotografia de autoria desconhecida

Foi num voo Marabá-Brasília.

O comandante dizia o de sempre. E em duas línguas. Texto mais que conhecido pra quem ultimamente elegera manter os pés mais tempo nas nuvens do que em terra firme.

Enquanto isso pessoas de pele bem morena, cabelos lisos e pretos, procuravam seus assentos. Vinham de shorts mostrando o elástico da calcinha, de chapéu de vaqueiro, relógio tipo rolex e mochila parecida com aquelas da Company. Mistura desregrada que certamente deixariam os que costumam viajar de Ray ban, Galaxy SIII e bolsa Louis Vuitton de cabelos em pé.

Não havia desconforto daqueles em ali estarem. O incômodo era meu mesmo.

Tinha acabado de ler um belo conto de Mia Couto no qual a seguinte frase me esfaqueara: “A pessoa viaja é pra ser esperado”.

Eu não. Esse luxo nunca tive. Nem nunca esperei por ele.

Mas nem era sobre isso que queria falar...

A vontade de escrever veio mesmo após o comissário de bordo dizer um par de coisas que foram traduzidas em três línguas. Incluindo o japonês.

Ri alto.

Olhei para o lado e o senhor de mochila mirava calmamente seu relógio de pulso, enquanto acomodava seu chapéu sobre o rosto, sem despregar os olhos das nuvens pelo quadradinho da janela.

Em quê pensava?

Haveria tradução possível que o desviasse de si próprio? Haveria alguém esperando por ele lá embaixo?

Seja como for, eu já o aguardava. Na verdade mais que isso: fitava-o acompanhando seu ensimesmamento de homem simples.

Em qual idioma seria possível falar com ele senão reverenciando sua poética por meio dessas parcas linhas?

P.S: ele escolheu beber coca zero e pareceu gostar do polenguinho sabor gorgonzola. Enquanto eu reparava bestamente na pronúncia da aeromoça que, de novo em duas línguas, dizia ser proibido um montão de coisas. Mas não entre elas, viajar para além da rota traçada para aquele avião.



segunda-feira, 15 de abril de 2013

Punheta


Diego Rivera, muralista mexicano

Se todo homem desvestisse a couraça limitadora do machismo e visse a mulher como uma parceira e não como uma ameaça, seria possível crer em uniões duradouras, porque felizes seriam.

A gente compreende, inclusive, os medos que impulsionam atitudes tirânicas e pouco afeitas ao reconhecimento da perspicácia do outro. Mas nem sequer discorrer sobre eles é possível quando instaurado está o desejo de subjugar para mascarar precariedades. No entanto, mesmo silenciada, sua voz grita, a feminina, sua presença se impõe como um doloroso incômodo que emudece as alegrias que surgiriam se não fosse essa estúpida pretensão de se crer dono de tudo: da verdade, do conhecimento, da razão que mina a energia que costuma impulsionar as ganas de amar, a vontade de cuidar, o gosto em acolher.

Punheta é bom, mas não afaga o peito cansado da lida do dia a dia.

Punheta relaxa, mas não dispensa o abraço doce que se insinua tímido depois de uma jornada de trabalho.

Punheta alivia, mas não alimenta sozinha uma existência ávida de gozos múltiplos e diversos.

O único tesão que salva é aquele em que o sexo em riste aponta para o sexo do outro para a consumação do encontro e não o que aponta para o seu próprio ego.

domingo, 17 de março de 2013

Luxo


Juliana Leal, fotógrafa brasileira amadora

Não dá trabalho amar, não. Dá trabalho é curar a ferida do desamor. Feita da espera inútil, do abraço vazio, do encontro nunca marcado, mas permanentemente esperado. Ferida que lateja pra lembrar que está ali, ainda que não se queira, ainda que se tente, conscientemente, esquecê-la. Afinal, certeza é um luxo do qual a gente não precisa. Nem para o alívio da dor. Pois serventia sempre há para o incômodo. Nem que seja só pra fazer lembrar que a felicidade também decorre dos riscos que assumimos. E que, junto com eles, também está no script um par de dissabores ou de fel no canto da boca.

Não é a toa que o adeus contido já está no encontro; a saudade, no reencontro e o fim tão logo se profere sins.

Que fazer senão reverenciar todas as formas de vida, inclusive aquelas que surgem em nuvens fugidias num céu azul de fim de tarde paraense?

sábado, 16 de março de 2013

Plural


Giovanni Marrozzini, fotógrafo italiano

Pra muitos, mais uma sentença que uma demonstração de afeto. Aprendi na escola.

Coloque no plural!

Pra pluralizar só passando pelo imperativo mesmo. Afinal, quem nessa sociedade do medo, da individualidade patológica, da singularidade que emudece a comunhão que, antes de tudo, quer doar está disposto a incluir sem achar que se está fazendo concessões irreversíveis? Sem deixar de pensar que se anulará na razão exata do espaço que conceder ao outro?

Tolice.

Hordas e hordas de seres, indiscutivelmente singularizados, vagando por aí. Saltando de ser em ser pra sorver de cada um deles, por uma noite, às vezes, até mais, a energia vital da cumplicidade que salva.

Ver um filme, jantar, tomar café da manhã, viajar, fazer compras...

Mire veja: o plural está em toda parte. Inútil singularizar o que só sobrevive com graça entre os nós de nós mesmos.