sábado, 25 de agosto de 2012

Na piscina tudo se resolve

 Vik Muniz, artista brasileiro

Levar criança pequena ao clube pode ser uma experiência bastante enriquecedora. Especialmente pra nós, adultos. Acredite!

Para além de provarmos nosso fôlego por corrermos, inúmeras vezes, para salvá-las dos constantes prenúncios de afogamentos, feridas, tombos, brigas... (“que a boia é minha; me dá ela aqui”, etc. e tal), experimentarmos ficar ali, a postos, lutando pra conciliar a leitura de um livro e a atenção à microssociedade que se forma na piscina, isso pode nos revelar um lado infanto-juvenil que poucos levam a sério: as crianças podem conviver harmoniosamente. Juro! Mesmo que nunca tenham se visto antes. E mesmo que nunca se vejam no futuro.

Aliás, invejo a espontaneidade e o desprendimento das crianças, em relação às pessoas que conhecem. Elas nunca exigem do outro nada mais do que momentos de diversão e felicidade. Naquele aqui e agora em que se conhecem. Promessas, planos, acordos, combinados para um “amanhã”, definitivamente, não têm importância pra elas.

Diferente do que fazemos conosco...

Já notaram como uma criança passa horas brincando com um amiguinho, sem sequer saber seu nome?

Mas pra que esse aqui e agora tenham cara de festa, elas precisam de uma mãozinha nossa. Coisa não necessariamente imprescindível, mas que pode fazer toda a diferença pra elas, no futuro. Como pessoas.

Preciso esclarecer: criança é pessoa; combinado?!

O problema é que nunca damos mãozinhas, mas, quase sempre, desprezo, autoridade em excesso ou despropositadas reprimendas. Ações que, ao invés de colaborarem com a harmonia desse microcosmo que se forma entre a água e o tobogã, acabam tolhendo essa tal felicidade efêmera que se forma na piscina e nossa merecida paz em um domingo no clube.


Cena 1: um menino de uns 3 anos, que tinha uma perninha mais curta que a outra, corre pra lá e pra cá e brinca com a boia do meu sobrinho. Ele, de longe, fica observando.
Pensei: vai ter briga!
Não houve.
Mas houve uma conversa rápida entre eles na escada do tobogã, dedo em riste do meu sobrinho e um rápido afastamento do menininho para junto de seu pai.
Corri lá e perguntei o que ele tinha dito ao menino. Me enrolando pacas, encurtei o rolo e falei:
— Pedro; não quero que você trate aquele menino mal; combinado? Ele é igual a você! I G U A L!
Ele me olhou com cara de interrogação e afirmou com uma contundência jamais vista:
— NÃO É NÃO!!!
Pensei: “É... você tá certo, mas tá errado. Como explico isso; meu Deus???”
Me calei, pra não dizer bobagens.
Mas, após o nosso curto diálogo, meu sobrinho não levantou mais o dedo pra ninguém.
Ponto pra ele, pra mim e pra todos os que estavam na piscina.


Cena 2: três adolescentes chegam enlouquecidos na piscininha e resolvem tomar conta do lugar. De longe, como sempre, observei a reação do meu sobrinho. Ele foi se afastando, se afastando (dentro da água), até se encostar à borda diametralmente oposta da piscina, do lado em que ficava o tobogã. Tudo em câmera lenta e observando, receoso, a diversão dos meninos.
Enlouqueci.
Fui lá, respirei fundo e falei pros três, com a experiência de quem já deu aula pra adolescentes como aqueles:
— Aqui, galera; seguinte: eu sei que vocês têm mais de 12 anos e, como é proibido vocês ficarem aqui, etc. e tal, queria fazer um trato. Vocês deixam os pequenos brincarem também. Tipo assim: eles escorregam, vocês também, todo mundo cuidando pra ninguém se machucar... Belê?
Dei um tapinha nas costas de um deles, sorri e nem esperei resposta. Dei as costas, voltei pra minha cadeira de sol e continuei lendo, como se estivesse indiferente ao que fosse acontecer lá, a partir de então.
Foi quando notei o maravilhoso: os pequenos já não tinham mais medo, os grandes calculavam, inteligentemente, seus gestos, pra não machucarem ninguém e ainda aproveitarem o brinquedo à sua maneira adolescente de ser.

            Mas, como na vida há imprevistos... foi inevitável que um deles acontecesse.
Uma das adolescentes desceu ensandecida pelo famoso tobogã e bateu os pés na barriga do meu sobrinho. Observei à distância e, depois de constatar, sem me mover do lugar, que ele não tinha se machucado, fingi continuar minha leitura. A menina, visivelmente desconcertada, continuou a brincar, mas muito mais cuidadosa que antes (à sua maneira; claro!). Lá de cima, falava pro Pedro e pra outros:
            — Menino; sai daí! Tô descendo.
            Achei o máximo!
            Ela, como eu, sabia que nada precisava ser dito. Porque o acordo tinha sido feito no início e eu confiei neles. E eles em mim.
            E ela, silenciosamente, me agradeceu. Agradeceu por eu entender que, mesmo tentando fazer a coisa certa, a gente, às vezes, se equivoca. E isso, definitivamente, não deveria ser motivo pra chamar o segurança pra tirá-los da piscina, recolher toalhas, filhos, brinquedos e ir embora.
            Porque, fazendo um esforcinho, “na piscina” tudo (ou quase tudo) pode se resolver...

            Mas, horas depois, o inesperado:

— O clube da FFG (traduzindo: UFMG) não é tão bom assim não; né, Bubu (esclarecendo: Bubu = Juliana Leal)? — disse meu sobrinho, quando íamos embora.
Surpresa — porque ele tinha passado mais de 5 horas subindo e descendo o tal tobogã que caía na piscininha, revelando o que, pra mim, era mais do que óbvio: uma alegria arretada — perguntei:
— Uai, gente, por quê?
— Porque eu caí; né, titia?
É que, minutos antes de irmos pro vestiário, ele escorregou no próprio chinelo e caiu no chão, ralando o joelho e o peito de um dos pezinhos.
Pensei, sorrindo mentalmente: “É... o clube podia ser melhor! E o mundo também... Mas a luta continua, bunitinho. A titia se esforçará mais no próximo passeio. Prometo!”.


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Pele ou osso?


Nádia Roque, fotógrafa amadora

Pensemos juntos...

Lembra quando se descascava laranja (algumas vezes apostando que a casca não se romperia), se lavava cadarço de tênis? Quando ligávamos pra rádio da cidade pra pedir uma música e dedicá-la a alguém?

Quando se sentava na calçada em frente a nossa casa sem nenhuma razão além da certeza que, logo, logo, uma renca de gente estaria ali junto contigo inventando as mais diversas bobeirazinhas que encheriam o dia de um nada que não faria senão nos empanturrar de alegria?

Chupar manga com sal, jogar adedanha, comer pão com maionese e tomate, responder àquele caderno de perguntas (zilhões delas) que todosantotinha e que todosanto lia as respostas dos outros, buscando não sei bem o quê. Facebook de brochura?

Ir à casa do vizinho e ver novela junto com todo mundo. Ir lá sem motivo, sem razão e, claro, sem avisar. Apenas ir. Sentar no sofá, no chão, na cama do amigo e ficar ali olhando em volta. Rapidamente o motivo de ali estar surgiria. Razão para isso nunca antecedia à visita, era consequência mesmo.

Passadas décadas da ilustração desse quadro de vida, cá estou eu entre livros de literatura, filmes pirateados, trufas de menta e meia garrafa de vinho tinto barato. Tentando morder, em círculos, o rabo de uma coisa definitivamente inútil: insistir em se alegrar rodeando-se de coisas e distanciando-se cada vez mais do inferno da convivência nossa de cada dia.
  

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Estratégia

Paul Cézanne, pintor francês

Dias há em que preciso me mudar dentro de minha própria casa. Tentativa vã de dar outro abrigo ao que há de mais insuportável em mim.

Outro dia, uma amiga me disse que, quando está triste, muda de lugar os móveis de seu apartamento. Não entendi bem a lógica disso, mas suponho que seja semelhante à que me leva a transferir meu corpo, continuamente, durante o dia, pelos cômodos de minha casa.

Dias há, no entanto, nos quais nenhum lugar consegue resistir ao meu ódio, ao meu afeto. Aí, me estatizo. E insisto. Em pontos. Feridas. Lugares. Lembranças que não param, um só segundo, de ir e vir, de ir e vir... vertiginosamente, a ponto de me confundir e não me permitir saber mais se sigo vivendo precisamente por causa deles ou se me suicido, voluntária e lentamente, por insistir em tomar a pulsação de um sentimento que teve dia, horário e local de sepultamento. Mas que, a despeito disso, ainda encontra, em meu lar e em meu corpo, motivos pra se reinventar a todo instante.

Quando poderei, enfim, descansar?

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Amor a vácuo


Yves Klein, artista francês

Assepsia é invariavelmente o primeiro que se pensa.

E a coisa vai por aí mesmo.

Quanto menos exposição, contato (que vem da presença, do toque, da palavra, da promessa...), menos chance de contaminar-se. Estragar-se.

Garantia plastificada de se crer dono de si, controlando suspiros e ais para que não doam e o jorro do gozo para que não gere frutos.

Mas foi num troço de noite, contexto que tinha tudo pra fazer jus à lógica do amor a vácuo, que escutou, assim TUDOJUNTO, que era linda, macia, cheirosa, gostosa, especial, jovem. E em três idiomas pra que não houvesse dúvidas.

No outro dia, sem a presença de seu interlocutor, mas carregando dentro de si os ecos do que ouvira, desejou, como se disso dependesse continuar vivendo, soltar os cabelos e assumir o calor da alteridade como ingrediente básico para enfeitar todos os santos dias de sua existência.

domingo, 12 de agosto de 2012

Mochila

Juliana Leal, fotógrafa amadora

Sabia que planejar era fundamental para tomar a decisão de ir, mas compreendia que era inútil pretender embrulhar seu amanhã em redomas. Isso dependeria menos de seu querer do que das variadas histórias que cruzariam com ela. Com a dela.

Mudar de rota, desviar trajetos, deixar-se levar transpondo entulhos existenciais, ambientava o ritmo daquilo que fora rotulado como viagem de férias. Meio lícito, todos concordariam, de desestressar. Espécie de reset ou refresh existencial. Como se fosse possível formatar nossas mochilas... Esvaziá-las para, sabe-se lá quando, voltar a enchê-las com uma infinidade de planos, de percursos pretenciosamente registráveis em guardanapos de boteco.

Mas foi desafiando algumas certezas, inclusive as que as levaram exatamente nesse lugar (cheio de surpresas e estranhos desafios), no qual havia ancorado uma vontadezinha modesta de ser feliz (por uns dias) que teve a lucidez que, em menos de uma semana, seria capaz não só de eliminar o que lhe incomodava, e que ocupava espaço demais, mas de encontrar sentido para a estrada futura que ainda percorreria. Mesmo que o cenário fosse diverso e que os atores fossem outros. Afinal, eles fariam, mesmo que não quisessem, parte indelével da cara de suas próximas paisagens.

Estariam ali. Interferindo nos seus sins e nos seus nãos.

Por isso não hesitou em sorrir de modo sincero para as possibilidades que apareciam diante de si. Uma depois da outra, e se entregar, mesmo quando exausto estava o corpo, ao gosto (ainda desconhecido) das infinitas promessas (de gozo, de fel, de sal, de sol) que surgiram ou surgiriam no percurso. Sorrir e agradecer.

E sentenciou: não burocratizaria mais seu viver. Protocolo em três vias agora só para a felicidade.

sábado, 4 de agosto de 2012

Ipê em flor


Claude Monet, pintor francês

Para Eduardo (in memorian), Leonardo e Simone.

Nunca vi ninguém tecendo elogios para uma flor de ipê, mas já vi muitos suspirando estupefatos, diante de um ipê em flor. Especialmente o amarelo.

Beleza compacta. Coesa. Definitiva.

Chega a ser desconcertante pensar isso no dia de hoje, 20 de julho. Porque, além de ser a data em que comemoramos o dia do amigo, é, também, a data em que uma dessas flores, de um certo ipê aqui de Uberlândia, sem muita força para manter-se junto a outras flores, resolveu se render à agressividade de um vento forte. Desses que surgem do nada e levantam saias, sacodem poeira, deslocam coisas do lugar... Desorganizam tudo, obrigando aos que sofrem sua ação a colocar as coisas novamente em seus lugares (ou em novos lugares), sob pena de obrigá-los a conviver com a lembrança constante do momento em que tudo tinha um espaço, um formato, uma cor, um sabor...

Mas um dia desses aí, quando ceifavam serreletricamente a vida de uma das árvores da minha rua, sob a justificativa de que suas raízes, muito grossas e superficiais, estavam destruindo a rede de esgoto de um dos edifícios, o funcionário da prefeitura me revelou:
— Antigamente, não pensavam muito nisso, mas a melhor árvore para plantar em calçadas é o ipê. Porque sua raiz cresce, quase sempre, numa direção só, para baixo, e se fixa mais profundamente na terra.

Lembrando-me disso, tive certeza: era mesmo ipê a tal árvore de Uberlândia.

Mas também poderia ser qualquer outra, porque plantas podadas ou mutiladas — eu nunca soube muito bem fazer essa diferenciação — conseguem encontrar, a despeito da morte ou de seu prenúncio, pretexto para se refazer.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Talento humano

Antonio Berni, pintor argentino

Quase ninguém costuma questionar a validade das manifestações humanas desencadeadas pelas catástrofes, a ponto de nos flagelarem e de nos autoflagelarmos, se não nos sensibilizamos por essa ou aquela tragédia. Por essa ou aquela dor.
— Você não ficou sabendo???
Nunca deixei de ver, amiúde, multidões de interessados pelo drama alheio. Tropas que sustentam profissionalmente uma atmosfera chorosa que se atualiza sempre e quando um de nós se dedica a contá-la, revivê-la, repeti-la. Incansavelmente.
— Foi horrível! Nem te conto! Um horror!
Desenhamos caretas de repúdio, nojo, asco, pena, piedade, compaixão... Lista de sintomas que não deixam dúvidas de que temos sentimentos, de que nos preocupamos, nos implicamos com o outro. Nos implicamos? Ou implicamos?
— Noooooooooooooossa Senhora! Como isso aconteceu?
— Você não ficou sabendo? Tão moço, ainda. E deixou três filhos pequenos... Um dó!
Encenamos os mais variados textos e os repetimos, quantas e quantas vezes seja necessário, pra contar e recontar o que nos chocou, sangrou, doeu... aquilo que nos exigiu renúncias ou a aceitação de perdas, recuperáveis ou não.
            Passamos boa parte de nossas existências ocupando-nos em gotejar o fel desses pequenos ou grandes dramas. E, sem perceber, moldamos nossas feições, cada linha de expressão de nosso rosto, ao compasso desse disco arranhado.
Quanto talento pro sofrimento!!! E quantos súditos aumentam a legião dos que perpetuam as tragédias em lembranças que não descansam.
Sabemos, com destreza, a melodia que devemos imprimir às nossas vozes e dominamos bem o que fazer com nossos olhares...
Mas tanto talento humano pra revolver o purulento não parece ajudar na hora em que nos defrontamos com sorrisos, abraços e gestos de carinho. Os naturais ou os propositalmente encenados.
É que, em BH, há um senhor que faz caminhada na Avenida Bernardo Vasconcelos... Que leva, durante todo o seu percurso, um sorriso enorme estampado na cara. O mesmo sorriso grande dessas máscaras de papel que encontramos pra comprar pras festas à fantasia ou pro carnaval. O dele, no entanto, ainda que aparentemente estático, já que não descansava um só instante de sorrir, tinha força suficiente pra deixar o sorriso, o olhar, o passo de que vinha em direção contrária a dele, incluindo a mim mesma, sofrerem momentos de intenso desconforto.
Que resposta se dá ao sorriso sincero de um desconhecido? Sorrir de volta? Abaixar a cabeça, consultar o celular, o relógio? Desviar o olhar, amarrar o tênis, passar as mãos pela cabeça e piscar profundamente, num tempo exato para abrir os olhos e não ter mais a demanda de sorrir de volta?
Vacilo.
Se há tanta aptidão, inclusive inata, para se indignar com a dor dos outros  — que levam curiosos a se amontoarem ao redor de cadáveres suicidas, atropelados, enfermos (vulneráveis em sua estaticidade de sangue e pele) —, por que não teríamos capacidade para lidar com um “inofensivo” sorriso???
Só sei que sua alegria me incomoda... mais, até, talvez, do que se eu o visse atropelado na tal avenida. Porque, diante da segunda, automaticamente, saberia como me comportar. Mas, diante de sua alegria (senil? pueril? de louco?), continuo me valendo de mil e um subterfúgios pra não encará-lo.
Mas tenho feito progressos. E me alegro com isso.