sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Resta um



Um dos desafios mais difíceis com o qual me deparei até hoje foi o desprendimento.
Ninguém parece discordar quando o assunto é ser feliz, viver em paz e em harmonia consigo mesmo e com o mundo. É preciso ser. Conectar-se com o mais íntimo do nosso eu para conseguirmos, no mínimo, esboçar um rascunho, mesmo que mal feito, desse projeto existencial.
Mas já notou que nesse ir e vir do ser passamos a maior parte do tempo lidando com o ter? Desprendendo-nos ou atando-nos a ele? Em nome, lógico, da conquista do ser?
Como seria possível exercitar o ser por si mesmo? Como desconsiderar que há um mar de outros sujeitos esforçando-se no mesmo intuito inútil e necessário?
Aí a gente tendo, acumulando números e estatísticas, vai achando que é. Que é muito.
E vai, pouco a pouco, se desviando da ideia original que parecia tão filosoficamente coerente, ideologicamente completa.
Até que o susto se transfigura na forma de um imenso vazio porque as coisas também são findas, como findos são nossos quereres.
E vamos brincando de resta um. Até que não sobra nada em volta, além de nós mesmos. E, claro, as centenas de orifícios vazios onde antes havia coisas, pessoas, futuro, desejo, medo, tesão...
Mas tudo bem! Começa-se o jogo de novo. E de novo. Afinal há sempre chance de se fazer mais pontos que da última vez. E esse universo de possibilidades cega a lembrança da conquista anterior. Aliás, ela nem tem tanta importância assim, já que há “sempre” a chance de se ir mais além.
Além de si próprio, inclusive.
E é aí, exatamente aí que a memória do jogo da entrega aberta, do joelho ralado, do salto no vazio, do convite inesperado passa, paulatinamente, a fazer sentido.
E as peças do tabuleiro que se acreditava estarem no mesmíssimo lugar já não podem mais ser movimentadas porque não serão mais reconhecidas como tal.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Sobre umbigos e motoqueiros



É... eu sei. Um motoqueiro pode aparecer do nada e atropelá-lo. Razão que justifica o perigo de cruzar ruas ou avenidas, mesmo quando parados os automóveis.
No entanto, ontem, quis cruzar a rua da Bahia, em meio a um engarrafamento absurdo. E, antes que a tal profecia se cumprisse, me certifiquei da inexistência de motocicletas e motoqueiros.
Mas, como a lei de Murphy não funciona só em filas de supermercado, eis que, do nada, me aparece um.
Seu surgimento, porém, estalou em mim o inesperado: ele me percebia.

Seus olhos me acompanharam lentamente, por trás do capacete, e, como que idolatrando alguém, cuja integridade física deseja preservar a todo custo, se deteve, tomando uma distância que, para mim, ia além do desejo de não me atingir.

Mas atingiu.

E em cheio!

Atingiu, porque reverenciava minha existência e seu gesto, de ternura incomum, me trouxe o afago doce que precisava nessa sexta-feira vazia. Me fez, subitamente, recuperar a consciência de que minha existência é, sim, perceptível. Mas para olhos que veem além da circunferência do próprio umbigo.

domingo, 18 de setembro de 2011

A bola é minha


A bola é minha! Vou embora! Me dá ela aí! Anda; manda ela aí, sô!!!

Faço isso, às vezes, de propósito mesmo. Porque, também, às vezes, me canso dessa chatice que é deixar os outros, em tempo integral, definirem as regras do jogo.

Por isso, às vezes, preciso sufocar esse meu desejo de seguir jogando.

Não se trata de abandonar o jogo e permitir que continuem definindo as regras, mas, literalmente, acabar com qualquer possibilidade de negociação. Ao menos, momentaneamente.

Se me excluem, se me ignoram, se não tocam a bola pra mim, quando isso poderia ser feito, que sentido tem fazer parte da equipe???


Se só existo porque a bola tem existência prévia a mim, então passarei a existir, na marra, porque ela existe. Simplesmente, porque sou dono dela; uai!

É errado pensar assim?

Enquanto os outros não conseguirem me ver além dessa esfera de borracha, estarei de alta. Não brinco mais. Pronto! Tá decidido!

Pena é quando a gente se constrói, sem perceber, em razão desses brinquedos. Pena é quando os outros só conseguem nos definir em razão da posse que temos deles.

É que, sem bolas, não há jogo. E a gente, sozinho, mesmo com a NOSSA bola nas mãos, nem sempre é completamente feliz. É como “ficar com um presente todo enfeitado de presente nas mãos — e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o!”*

Por isso, me decidi: não tô de alta mais. Quero jogar! E de qualquer maneira!

* Retirei este trecho da obra “A descoberta do mundo” de Clarice Lispector. 

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

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— Vai mesmo! Vai voltar a pé!


—  Pode ir, meu filho! Eu tenho pernas e posso muito bem voltar pra casa sozinha...

Olhei pros cabelos dela, disfarçadamente. Loiros, ondulados. Bonitos. Embora o rosto que os sustentassem revelasse um olhar de boxeador, segundos antes do nocaute. Não do seu, obviamente.

Mas esse era dela. Era sim. E acho que, no fundo, ela, há muito, já sabia isso.

Que fosse!!! —  protestei em silêncio. Também já hospedara olhares como aquele e sabia — nesse lugar confortável daquele que olha a  distância o outro sofrer — que o preço da paz é elevadíssimo e se preciso fosse começar tudo do zero novamente, ainda assim, valeria a pena.

—  Jogue a tolha! — pensei.

Olhei pra ela e, sem pudor algum pela intromissão, disse: — Você é linda, viu? Se enxerga!

—  Pois é! O carro é meu e tenho carteira, acredita? Sou independente financeiramente e...

Interrompi mentalmente seu desabafo e inevitavelmente me perguntei: “— Por quê a gente faz isso com a gente? Por quê???”

Voltei pra casa pensando...

No caminho, uma sucessão de mortes traçou meu percurso: um passarinho esmagado molhado de chuva, um pé de girassol partido ao meio que, dias antes, estava altivo que dava gosto e um cachorro morto dentro de um saco de ração.

Esboçando um sorriso no canto dos lábios, pensei: Quanto aos três, nada se podia fazer, mas quanto a ela... Ah, sim!!! Quanto a ela...


domingo, 11 de setembro de 2011

Pus



Quando era criança, não entendia como minha mãe era capaz de, vendo uma fruta apodrecer, dizer: “— Dá pra comer!!!”. Chegava a sentir náuseas, mesmo ela me assegurando que, eliminando a parte estragada, poderíamos comê-la sem problemas.
A parte pelo todo. Sensação metonímica. Acho que era isso o que eu sentia. Via a parte feia da coisa e, automaticamente, considerava o todo digno do meu desprezo, do meu não-apreço.
Não dava. Eu não comia.
            Hoje, na fase adulta, me deparo com tomates a cinco reais o quilo. E me indigno! Como assim, cinco reais??? E me vejo, naturalmente, ressignificando o valor das coisas.
No último final de semana, por exemplo, voltando de uma cachoeira, vi um galho dourado no chão que interrompeu, altivo, minha caminhada. Não! Não era um galho seco. Aquilo era o objeto de decoração que precisava prum cantinho ocioso da minha casa. Ao vê-lo, me lembrei do que sobrara de uma orquídea linda que ganhei: apenas o vaso, com suas raízes secas causadas pela morte compulsória, ocasionada pelos mais de trinta dias que fiquei fora de casa.
            Junto com outra grande amiga, aproveitei o contexto, me agachei e recolhi, sorridente, uma série de pedrinhas brancas que dariam o toque final da obra de arte que acabara de, mentalmente, montar: o que sobrara de um presente de uma amiga querida, uma recordação de um passeio feliz numa cachoeira bonita de Diamantina e um punhado de pedras (dezenas delas), com as quais nos deparamos no meio do caminho.
            O resultado dessa união de coisas “mortas”, dignas, talvez, em outras circunstâncias, de terminarem no lixo, foi um enfeite bonito que construí pra minha casa.
            Não pretendo, com isso, dizer que passei a entender a lógica da minha mãe sobre os alimentos, que é também — venho constatando isso mais e mais, a cada dia — a mesma daqueles cujas coisas não caem do céu: retirando o podre, claro!, pode-se... Enfim...
Continuo achando isso muito estranho ainda. Continuo tendo dificuldades pra controlar meus instintos assassinos e não oferecer o lixo como único fim para aquilo que, em um dado momento, se mostra, pra mim, repugnante. Mesmo que somente uma pequena parte sua.
            E, falando sobre isso, penso na tolerância... Penso muito nela. Nessa capacidade que alguns têm de esperar. Esperar pra ver se a ferida se alastra realmente. Ou se recebe a cura de presente. Esperar pra ver se vale a pena confiar no outro. Esperar pra ver as coisas melhorarem. Afinal, a gente não encontra tudo pronto e é preciso, muito, dizem, ter paciência. Ter, enfim, a perspicácia daqueles que olham pra chaga purulenta e veem possibilidade de vida. Vindoura, presente, passada... De olhar pra algo morto (morto???) e lhe dar utilidade, lhe dar chance. Tempo. Significado.
            Tempo pra ver florir, por exemplo, um pedaço mixuruca de uma flor que minha mãe disse se chamar beijo, quando esteve de visita por estas bandas das Minas Gerais. E ela — a mesma que ainda insiste em que eu não elimine uma verdura, legume ou fruta, por identificar manchinhas escuras ou partes amolecidas pelo tempo —, olhando pro tal raminho, decretou, sem dó nem piedade: “— Beijo não pega assim, minha filha”. “— Vai morrer!”
            Olhando, quinze dias depois, pra plantinha (agora um pouco menos mixuruca, mas viva)... olhando pro enfeite que montei e vigiando pra que meus alimentos não se decomponham antes que eu os coma, concluo, sem muito vacilar: preciso ler poesia todos os dias... Poesia pra perceber ou construir vida em torno de mim. O tempo todo. Todo o tempo. Pra entender que pus, por exemplo, não é tão nojento assim. É simplesmente o que resulta de uma briguinha invisível pela manutenção da vida.