domingo, 23 de dezembro de 2012

Carta aberta de Natal

Zé Rocha, fotógrafo brasileiro


Não tenho nada pra pedir não. Acho que tenho é pra fazer mesmo. Pra variar.

Mas, antes, devo agradecer. Por cada soco nos sonhos que tinha. Eles não dariam conta de germinar ao lado de tanto vômito. Perto de tanta unha arranhando quadro de escola.

Não combinava.

Sonho, desejo, afeto gostam de abrigo quente e macio. Cabelos soltos em balanço de parque, num fim de tarde de um domingo qualquer, sabe? Regaço sólido da casa da mãe, lugar onde o fogão sempre está pronto pra alimentar o ventre faminto do filho que regressa.

Mas ainda bem que peixe que tem consciência de isca, não morre pela boca.

Mas e de isca que atrai coração bolha de sabão? Dá pra escapar?

Ano doido, comprido, intenso. Janeiro e fevereiro poderiam ter sido, sozinhos, pra mim, os 365 dias do ano todo. Ano que todo mundo acreditou que se findaria no vigésimo primeiro dia do mês de dezembro.

Mas mire e veja: o mundo acaba é todo dia.

Infinidades de tragediazinhas que fariam a festa de serviços do tipo tele-afeto. Desses que a gente ligaria e pediria um X-cafuné com carinho e delicadeza que, lógico, chegaria em, no máximo, 8 minutos.

Mas não! Afeto dos bons não flui no sistema delivery. O melhor demanda tempo. Exige crença firme naquilo que não se vê.

Repare: não acreditar no improvável torna as coisas ainda mais inacessíveis.

Por isso, esse Natal vai ser diferente porque a responsa dos presentes vai ficar por minha conta mesmo. Tenho muito que celebrar a vida dessa multidão de seres que contabilizo em apenas uma de minhas mãos. Eles merecem meu lado melhor. O lado mais bonito de mim. Lado que eu mesma desconheço, mas sei que existe. Sei que existe.

Só resta saber se eles vão dar conta de esperar a hora de abrir esses presentes

domingo, 2 de dezembro de 2012

Sobre ocos e apoteoses


Edvard Munch, pintor norueguês

Então era isso? Só isso?

Mas também não tinha porquê ser muito, se o que se espera das coisas é quase sempre mais do que elas efetivamente podem nos proporcionar. Porque o muito quase sempre se encontra em algum lugar exterior a esse outro que insistimos em coisificar. O outro é apenas outro. Com suas contradições e mazelas.

Pra quê, então, apostar arco-íris no campo minado de nossos escuros existenciais?

A gente sempre machuca. Sempre se machuca.

Mas e se nos intervalos da apoteose da dor, for possível sentir a libertação desse inevitável da vida?

Rajadas de vazio se preenchem com arroz e feijão?

Não! Eu não queria gostar mais de você do que de mim. Mas admito, sem culpas, que sempre fui melhor de verbo que de ação. Eu queria mesmo era me lambuzar com as possibilidades de vida e de morte da convivência com ambos. E com toda a complexidade da vida que compusesse seus entornos. Nossos entornos. Até não mais haver limites... Até não mais haver razões para defendê-los com bambus ou arames farpados.

Eu não tinha mesmo nada pra fazer. Qualquer resto de vida, herança dos que sabem cultivar a família, a despeito de pragas diversas que muitas vezes se alojam no cotidiano, conclamando a solidão, o vazio, o egoísmo, eu defendia. Eu queria.

Aliás, o egocentrismo sempre me pareceu a forma mais estúpida de enfrentar a carência, o desamor, a desesperança, o desafeto...

Por isso uma e outra vez me perguntava: quanta responsabilidade carrega sozinho um homem que toma uma decisão por amor? E não falo de amor próprio, hein? Para os engraçadinhos de plantão, falo de amor pela alteridade. Pelo que se situa justamente fora de nós e sem o qual não somos nada além de corpos vagando, dia após dia, pela imensidão do vazio-nada de nós mesmos. Ocos preenchidos, especialmente agora que estamos em mês natalino, por aquisições cujos sentidos se esgotam antes mesmo que suas parcelas sejam liquidadas na fatura do cartão de crédito.

Mas e eu? Quando terei crédito? Quando? Quanto me darão?

Pior não é nunca ter tido nada pra dividir com alguém. Ruim mesmo é não ter outro pra compartilhar o muito que sem tem.

Dor pela sobra e não pela ausência: como se cura isso? 

Se cura isso?


domingo, 11 de novembro de 2012

(in) tenso

Robert Doisneau, fotógrafo francês


Ainda bem que meu corpo que sua, fede e escorre, me lembra, sábio, que é preciso que eu me renove. Nem que seja só no banheiro.

Continuar amando quem te abandona é o amor mais puro que conheço. Deve ser por isso que sempre suspeitei que masoquismo pudesse ser amor dos bons disfarçado de doença. Pôr à prova diagnósticos com crivo de um CRM respeitado é tão difícil quanto fazer crer que receita verdadeira de vida se faz é com restos. Com o que se tem em mãos mesmo.

Restos de esmalte vermelho nas unhas se tira com acetona. E restos de gente na alma, se tira com o quê?

Porque às vezes ou quase todas as vezes, não há tempo disponível para se fazer listas de compras, para enfrentar filas intermináveis. Porque há certos “sins” que são pra ontem eprontoacabou. Por isso enfrento vazios para oportunizar encontros, mesmo que o amor tenha virado verbo sem sujeito composto. Daí a tentativa de encontrar felicidade no inesperado que desponta toda hora durante esse processo inútil da espera do algo (a abominável coisa para a qual atribuímos mais valor que a nós mesmos) que nos redima da morte, da solidão e da dor.

Indeterminando-me por instantes (infinitos, meu Deus!), personalizo-me. Ganho luz. Tudo pra não me assujeitar a individualidades que, admitamos de uma vez por todas, estão mais perdidas que cego em tiroteio.

Poetizando-me resisto à espera da ruptura desse silêncio que diz tanto, de forma enviesada, interpretada fraternalmente por amigos que escondem chaves de carro pra evitar que se perca a dignidade. Mal sabendo eles que nem precisamos delas pra estar lá. Ao lado daquilo que não se tem, mas se deseja.

Preciso mesmo de transporte é para tirar férias de mim.

Dias cinzas sem amor doem menos ou mais?

Ansiedade, dizem, já é sobrenome de mulher. Batismo consagrado no ultrassom que, sem censura, identifica a vagina oca, infinitamente preenchível de sonhos e desejos, diferentemente do senso comum que sentencia ser apenas a falta de falos.

É possível sentir falta de algo que nunca se teve?

_ Não é ansiedade não, my darling. É fome de vida diária porque três vezes por semana em jejum tá sendo insuficiente, me entende?

_ Então porque você não troca o medicamento? De repente pode funcionar.

_ Não! Vou trocar é de médico! 

Ah... E que conste em ata que já agendei uma visita do técnico da Sky pra próxima terça. Parece que ver TV, às vezes, salva. Só não sei ainda do quê.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Passando a limpo


 Robert Doisneau, fotógrafo francês


Seria a vida, enfim, isso mesmo: um contínuo ir e vir?

Um parto eterno, cujo filho nunca nasce inteiro, porque é, antes, a própria contração? Porque é menos a espera de algo redentor que sucessões e sucessões e sucessões de... Todas e cada uma delas. Todos e cada um deles.

Estamos preparados para esse tanto? Ou desejamos, no fundo, uma espécie de vida inseminada, cuja face se conhece antes mesmo de tocá-la, de vê-la, de senti-la?

— Mas o que eu...

— Não! Não se preocupe, mijito. Você logo desejará outra coisa, você vai ver! Logo ficará insatisfeito com o que tem e ansiará o novo. Acontece com todos. Normal. A fila anda e é preciso encontrar outras razões para movimentar essa engrenagem. Natural.

— Mas é que queria tanto parar aqui... Ficar um tempo...

— Peeeraí!!!! Mas e se eu não voltar??? Se não voltar, eu morro?

— Sim. Mas pode ser de felicidade.

domingo, 23 de setembro de 2012

Luto


fotógrafo desconhecido

Minha irmã me ligou hoje dizendo que estavam de luto.

Elizabeth havia morrido durante o parto. O segundo, coitada.

Meu sobrinho, inconsolado, não quis nem falar comigo pelo telefone. Melhor assim, pensei. Não gostaria de tentar tirá-lo de sua tristeza porque ele precisaria dela pra poder compreender (será que isso se compreende?), ainda que levemente, que o universo feminino é muito complexo. Justamente por conter, de modo irremediável, coisas demasiado duras e outras, assaz delicadas.

Me explico. Antes de Elizabeth morrer, um dia ao acordar, olhei pra gaiola e vi a seguinte cena: no tubo colorido, na parte mais alta dele, estava Arthur, seu digníssimo esposo, roendo, solitário, embora freneticamente, seu amendoim. Seu breakfast de hamster rei.

Na parte inferior do tubo, os cinco filhotinhos, ainda com aquela pele esquisita sobre os olhos que os faziam mais parecer girinos, se digladiando para, como bebês famintos, tomar, como o pai, seu café da manhã.

Elizabeth paradinha, se mantinha firme. Será que também sentia fome?

Nem quis olhar pros olhos dela... Ri por dentro e soltei, lembro-me bem, a seguinte frase: “O mundo animal imitando a vida humana!” E desci, ironicamente, pra tomar meu café da manhã.

Chore mesmo, meu amor. Mas sorria. Sorria porque mesmo morta, Elizabeth foi e sempre será rainha. Não foi esse o motivo de você ter escolhido o nome dela? Rainha porque, como todas as fêmeas do mundo, é forte, é guerreira e aguenta firme muito rojão. Embora, seja, como todos os seres vivos, machos ou fêmeas, frágil, frágil a ponto de ter, quando uma força muito devastadora chega, que ceder ao cansaço e dizer adeus.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Suicídio


Marina Abramovic, performer iugoslava

Bom é dizer o que se sente, mesmo que na hora exata do dizer arranhe aguda a intuição de que tenha sido precoce demais.

Bom também, depois disso, é confessar-se vítima da palavra precipitada que precipitou, sem dó, o corpo no vazio da ausência que grita silenciosa pela textura de um outro corpo... Corpo cujos suspiros, hoje, pela insistência em não ser sincero consigo mesmo, são, linhas tênues que se suicidam paulatinamente no desejo reprimido pela sinceridade malsã. 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Opacidade

Gustav Klimt, pintor austríaco

Convivia cotidianamente com a complexidade e até ousava, vez ou outra, apontar respostas. Provisórias e necessárias, para garantir o que lhe garantiria a sobrevivência.

Física.

Quântica.

Líquido vital extraído a despeito do seu querer (nem sempre queria...) e que a levaria, quando tudo aquilo terminasse, enfim... a um lugar onde o cálcio seria o mesmo, mas o negrume daquilo que os tinha envolvido, em vida, não havia sido elo de absolutamente nada. Não passava de uma semelhança incômoda.

E antes mesmo que emitisse seu primeiro suspiro de terror. O primeiro de tantos outros que ecoariam ininterruptamente e simultaneamente na epiderme salítrica desse lugar (da irregularidade das pedras e do medonho excesso de janelas)... Pra quê tanta janela, meu Deus? Se o que mais queria era ser menos... menos... cada vez menos...

Dessa náusea de se sentir nua neste inverno cortante sob o qual a herança do verbo (oral, natural, maldoso — muitas vezes — ingênuo, curioso...), alforriado dos grilhões da discrição médio-burguesa, tece, afiado, afinado, camadas e camadas de tecidos inúteis sob a pele. Difíceis de renovar.

Suspiros que ecoariam também — percebia, percorrendo o circuito sinuoso do caminho — no olhar curioso da moça lavando roupa no Rio Grande de concreto. Sem saber, por razões que muitos de nós já sabemos, que entendemos, que contamos, que ...

... que, subindo um pouco mais pra olhar e se olhar (lá do alto... e no alto...), não veria nada além de uma película opaca que irritava a simetria mofada daquela paisagem barroca. Barrosa. Borrosa... 

domingo, 9 de setembro de 2012

Silêncio azul

Sara Takahashi, fotógrafa amadora

Acho que foi lendo um livro do Rubem Alves que, pela primeira vez, pensei sobre a falta de habilidade com que o ser humano lida com o silêncio.
Sobre essa perseguição, muitas vezes inconsciente, que perpetramos contra essa ausência sonora absurdamente cheia de significados... recusando-nos a senti-la pela crença equivocada de que a palavra falada deva, sempre, preencher o espaço-tempo de nossa existência.
Mas, ontem, conheci um homem silencioso.
Silêncio de olhos azuis.
Olhar que me pareceu há muito haver-se rendido (por opção ou por falta dela?) a uma sonoridade interna absolutamente distinta daquela que o rodeava. Feita de ruídos de visitas que chegavam e partiam; que entravam e saíam de seu quarto, de conversas na cozinha, ao seu redor...
Silêncio que, a despeito de tudo e de todos, mantinha-se absurdamente sereno. Terno. Ainda que toda essa ternura se voltasse, resignadamente, para o chão. O que me deixava convencida de que havia um turbilhão ainda maior de significados nesse gesto solitário. Contraditórios, fugazes... Mas plenamente convictos. Essa certeza eu tinha!
Foi quando senti pena.
De mim.
Pena, por saber que ainda precisarei que meus cabelos fiquem da cor dos dele, pra eu conseguir roçar essa sabedoria que faz com que quem o conheça se sinta, inevitavelmente, mais frágil do que ele.  

Um motivo para reciclar o lixo doméstico


Já viram um homem, entre papéis higiênicos sujos de bosta, restos de comida e outras sobras, separando garrafas PET, latinhas de alumínio e papéis para se manter vivo?
É indigno!

sábado, 1 de setembro de 2012

Pedigree

Bunsky, artista britânico

­ _ Quanto custa um cavalo?

_  Cavalo?

_ Antigamente, com R$500,00 se comprava um.

_ E o amor?

_ O amor? Uai... Antes, não havia preço; hoje, costumam trocá-lo. Acho.

_ Trocá-lo?

_ É! Meia horinha de coração disparado, tremor de mãos e sexo suficientemente lubrificado, indícios frequentemente relacionados ao amor, troca-se por total discrição, desprendimento afetivo e desapego emocional.

_ E isso é mais vantajoso?

_ Suspeito que ambas as partes acabam perdendo, mas enfim... é o que há disponível no mercado no momento. É pegar ou largar pra lá, entende?

_ Mais ou menos.

_ E cavalo, hoje em dia?

_ Depende. De raça ou tipo pangaré mesmo?

sábado, 25 de agosto de 2012

Na piscina tudo se resolve

 Vik Muniz, artista brasileiro

Levar criança pequena ao clube pode ser uma experiência bastante enriquecedora. Especialmente pra nós, adultos. Acredite!

Para além de provarmos nosso fôlego por corrermos, inúmeras vezes, para salvá-las dos constantes prenúncios de afogamentos, feridas, tombos, brigas... (“que a boia é minha; me dá ela aqui”, etc. e tal), experimentarmos ficar ali, a postos, lutando pra conciliar a leitura de um livro e a atenção à microssociedade que se forma na piscina, isso pode nos revelar um lado infanto-juvenil que poucos levam a sério: as crianças podem conviver harmoniosamente. Juro! Mesmo que nunca tenham se visto antes. E mesmo que nunca se vejam no futuro.

Aliás, invejo a espontaneidade e o desprendimento das crianças, em relação às pessoas que conhecem. Elas nunca exigem do outro nada mais do que momentos de diversão e felicidade. Naquele aqui e agora em que se conhecem. Promessas, planos, acordos, combinados para um “amanhã”, definitivamente, não têm importância pra elas.

Diferente do que fazemos conosco...

Já notaram como uma criança passa horas brincando com um amiguinho, sem sequer saber seu nome?

Mas pra que esse aqui e agora tenham cara de festa, elas precisam de uma mãozinha nossa. Coisa não necessariamente imprescindível, mas que pode fazer toda a diferença pra elas, no futuro. Como pessoas.

Preciso esclarecer: criança é pessoa; combinado?!

O problema é que nunca damos mãozinhas, mas, quase sempre, desprezo, autoridade em excesso ou despropositadas reprimendas. Ações que, ao invés de colaborarem com a harmonia desse microcosmo que se forma entre a água e o tobogã, acabam tolhendo essa tal felicidade efêmera que se forma na piscina e nossa merecida paz em um domingo no clube.


Cena 1: um menino de uns 3 anos, que tinha uma perninha mais curta que a outra, corre pra lá e pra cá e brinca com a boia do meu sobrinho. Ele, de longe, fica observando.
Pensei: vai ter briga!
Não houve.
Mas houve uma conversa rápida entre eles na escada do tobogã, dedo em riste do meu sobrinho e um rápido afastamento do menininho para junto de seu pai.
Corri lá e perguntei o que ele tinha dito ao menino. Me enrolando pacas, encurtei o rolo e falei:
— Pedro; não quero que você trate aquele menino mal; combinado? Ele é igual a você! I G U A L!
Ele me olhou com cara de interrogação e afirmou com uma contundência jamais vista:
— NÃO É NÃO!!!
Pensei: “É... você tá certo, mas tá errado. Como explico isso; meu Deus???”
Me calei, pra não dizer bobagens.
Mas, após o nosso curto diálogo, meu sobrinho não levantou mais o dedo pra ninguém.
Ponto pra ele, pra mim e pra todos os que estavam na piscina.


Cena 2: três adolescentes chegam enlouquecidos na piscininha e resolvem tomar conta do lugar. De longe, como sempre, observei a reação do meu sobrinho. Ele foi se afastando, se afastando (dentro da água), até se encostar à borda diametralmente oposta da piscina, do lado em que ficava o tobogã. Tudo em câmera lenta e observando, receoso, a diversão dos meninos.
Enlouqueci.
Fui lá, respirei fundo e falei pros três, com a experiência de quem já deu aula pra adolescentes como aqueles:
— Aqui, galera; seguinte: eu sei que vocês têm mais de 12 anos e, como é proibido vocês ficarem aqui, etc. e tal, queria fazer um trato. Vocês deixam os pequenos brincarem também. Tipo assim: eles escorregam, vocês também, todo mundo cuidando pra ninguém se machucar... Belê?
Dei um tapinha nas costas de um deles, sorri e nem esperei resposta. Dei as costas, voltei pra minha cadeira de sol e continuei lendo, como se estivesse indiferente ao que fosse acontecer lá, a partir de então.
Foi quando notei o maravilhoso: os pequenos já não tinham mais medo, os grandes calculavam, inteligentemente, seus gestos, pra não machucarem ninguém e ainda aproveitarem o brinquedo à sua maneira adolescente de ser.

            Mas, como na vida há imprevistos... foi inevitável que um deles acontecesse.
Uma das adolescentes desceu ensandecida pelo famoso tobogã e bateu os pés na barriga do meu sobrinho. Observei à distância e, depois de constatar, sem me mover do lugar, que ele não tinha se machucado, fingi continuar minha leitura. A menina, visivelmente desconcertada, continuou a brincar, mas muito mais cuidadosa que antes (à sua maneira; claro!). Lá de cima, falava pro Pedro e pra outros:
            — Menino; sai daí! Tô descendo.
            Achei o máximo!
            Ela, como eu, sabia que nada precisava ser dito. Porque o acordo tinha sido feito no início e eu confiei neles. E eles em mim.
            E ela, silenciosamente, me agradeceu. Agradeceu por eu entender que, mesmo tentando fazer a coisa certa, a gente, às vezes, se equivoca. E isso, definitivamente, não deveria ser motivo pra chamar o segurança pra tirá-los da piscina, recolher toalhas, filhos, brinquedos e ir embora.
            Porque, fazendo um esforcinho, “na piscina” tudo (ou quase tudo) pode se resolver...

            Mas, horas depois, o inesperado:

— O clube da FFG (traduzindo: UFMG) não é tão bom assim não; né, Bubu (esclarecendo: Bubu = Juliana Leal)? — disse meu sobrinho, quando íamos embora.
Surpresa — porque ele tinha passado mais de 5 horas subindo e descendo o tal tobogã que caía na piscininha, revelando o que, pra mim, era mais do que óbvio: uma alegria arretada — perguntei:
— Uai, gente, por quê?
— Porque eu caí; né, titia?
É que, minutos antes de irmos pro vestiário, ele escorregou no próprio chinelo e caiu no chão, ralando o joelho e o peito de um dos pezinhos.
Pensei, sorrindo mentalmente: “É... o clube podia ser melhor! E o mundo também... Mas a luta continua, bunitinho. A titia se esforçará mais no próximo passeio. Prometo!”.


terça-feira, 21 de agosto de 2012

Pele ou osso?


Nádia Roque, fotógrafa amadora

Pensemos juntos...

Lembra quando se descascava laranja (algumas vezes apostando que a casca não se romperia), se lavava cadarço de tênis? Quando ligávamos pra rádio da cidade pra pedir uma música e dedicá-la a alguém?

Quando se sentava na calçada em frente a nossa casa sem nenhuma razão além da certeza que, logo, logo, uma renca de gente estaria ali junto contigo inventando as mais diversas bobeirazinhas que encheriam o dia de um nada que não faria senão nos empanturrar de alegria?

Chupar manga com sal, jogar adedanha, comer pão com maionese e tomate, responder àquele caderno de perguntas (zilhões delas) que todosantotinha e que todosanto lia as respostas dos outros, buscando não sei bem o quê. Facebook de brochura?

Ir à casa do vizinho e ver novela junto com todo mundo. Ir lá sem motivo, sem razão e, claro, sem avisar. Apenas ir. Sentar no sofá, no chão, na cama do amigo e ficar ali olhando em volta. Rapidamente o motivo de ali estar surgiria. Razão para isso nunca antecedia à visita, era consequência mesmo.

Passadas décadas da ilustração desse quadro de vida, cá estou eu entre livros de literatura, filmes pirateados, trufas de menta e meia garrafa de vinho tinto barato. Tentando morder, em círculos, o rabo de uma coisa definitivamente inútil: insistir em se alegrar rodeando-se de coisas e distanciando-se cada vez mais do inferno da convivência nossa de cada dia.
  

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Estratégia

Paul Cézanne, pintor francês

Dias há em que preciso me mudar dentro de minha própria casa. Tentativa vã de dar outro abrigo ao que há de mais insuportável em mim.

Outro dia, uma amiga me disse que, quando está triste, muda de lugar os móveis de seu apartamento. Não entendi bem a lógica disso, mas suponho que seja semelhante à que me leva a transferir meu corpo, continuamente, durante o dia, pelos cômodos de minha casa.

Dias há, no entanto, nos quais nenhum lugar consegue resistir ao meu ódio, ao meu afeto. Aí, me estatizo. E insisto. Em pontos. Feridas. Lugares. Lembranças que não param, um só segundo, de ir e vir, de ir e vir... vertiginosamente, a ponto de me confundir e não me permitir saber mais se sigo vivendo precisamente por causa deles ou se me suicido, voluntária e lentamente, por insistir em tomar a pulsação de um sentimento que teve dia, horário e local de sepultamento. Mas que, a despeito disso, ainda encontra, em meu lar e em meu corpo, motivos pra se reinventar a todo instante.

Quando poderei, enfim, descansar?

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Amor a vácuo


Yves Klein, artista francês

Assepsia é invariavelmente o primeiro que se pensa.

E a coisa vai por aí mesmo.

Quanto menos exposição, contato (que vem da presença, do toque, da palavra, da promessa...), menos chance de contaminar-se. Estragar-se.

Garantia plastificada de se crer dono de si, controlando suspiros e ais para que não doam e o jorro do gozo para que não gere frutos.

Mas foi num troço de noite, contexto que tinha tudo pra fazer jus à lógica do amor a vácuo, que escutou, assim TUDOJUNTO, que era linda, macia, cheirosa, gostosa, especial, jovem. E em três idiomas pra que não houvesse dúvidas.

No outro dia, sem a presença de seu interlocutor, mas carregando dentro de si os ecos do que ouvira, desejou, como se disso dependesse continuar vivendo, soltar os cabelos e assumir o calor da alteridade como ingrediente básico para enfeitar todos os santos dias de sua existência.

domingo, 12 de agosto de 2012

Mochila

Juliana Leal, fotógrafa amadora

Sabia que planejar era fundamental para tomar a decisão de ir, mas compreendia que era inútil pretender embrulhar seu amanhã em redomas. Isso dependeria menos de seu querer do que das variadas histórias que cruzariam com ela. Com a dela.

Mudar de rota, desviar trajetos, deixar-se levar transpondo entulhos existenciais, ambientava o ritmo daquilo que fora rotulado como viagem de férias. Meio lícito, todos concordariam, de desestressar. Espécie de reset ou refresh existencial. Como se fosse possível formatar nossas mochilas... Esvaziá-las para, sabe-se lá quando, voltar a enchê-las com uma infinidade de planos, de percursos pretenciosamente registráveis em guardanapos de boteco.

Mas foi desafiando algumas certezas, inclusive as que as levaram exatamente nesse lugar (cheio de surpresas e estranhos desafios), no qual havia ancorado uma vontadezinha modesta de ser feliz (por uns dias) que teve a lucidez que, em menos de uma semana, seria capaz não só de eliminar o que lhe incomodava, e que ocupava espaço demais, mas de encontrar sentido para a estrada futura que ainda percorreria. Mesmo que o cenário fosse diverso e que os atores fossem outros. Afinal, eles fariam, mesmo que não quisessem, parte indelével da cara de suas próximas paisagens.

Estariam ali. Interferindo nos seus sins e nos seus nãos.

Por isso não hesitou em sorrir de modo sincero para as possibilidades que apareciam diante de si. Uma depois da outra, e se entregar, mesmo quando exausto estava o corpo, ao gosto (ainda desconhecido) das infinitas promessas (de gozo, de fel, de sal, de sol) que surgiram ou surgiriam no percurso. Sorrir e agradecer.

E sentenciou: não burocratizaria mais seu viver. Protocolo em três vias agora só para a felicidade.

sábado, 4 de agosto de 2012

Ipê em flor


Claude Monet, pintor francês

Para Eduardo (in memorian), Leonardo e Simone.

Nunca vi ninguém tecendo elogios para uma flor de ipê, mas já vi muitos suspirando estupefatos, diante de um ipê em flor. Especialmente o amarelo.

Beleza compacta. Coesa. Definitiva.

Chega a ser desconcertante pensar isso no dia de hoje, 20 de julho. Porque, além de ser a data em que comemoramos o dia do amigo, é, também, a data em que uma dessas flores, de um certo ipê aqui de Uberlândia, sem muita força para manter-se junto a outras flores, resolveu se render à agressividade de um vento forte. Desses que surgem do nada e levantam saias, sacodem poeira, deslocam coisas do lugar... Desorganizam tudo, obrigando aos que sofrem sua ação a colocar as coisas novamente em seus lugares (ou em novos lugares), sob pena de obrigá-los a conviver com a lembrança constante do momento em que tudo tinha um espaço, um formato, uma cor, um sabor...

Mas um dia desses aí, quando ceifavam serreletricamente a vida de uma das árvores da minha rua, sob a justificativa de que suas raízes, muito grossas e superficiais, estavam destruindo a rede de esgoto de um dos edifícios, o funcionário da prefeitura me revelou:
— Antigamente, não pensavam muito nisso, mas a melhor árvore para plantar em calçadas é o ipê. Porque sua raiz cresce, quase sempre, numa direção só, para baixo, e se fixa mais profundamente na terra.

Lembrando-me disso, tive certeza: era mesmo ipê a tal árvore de Uberlândia.

Mas também poderia ser qualquer outra, porque plantas podadas ou mutiladas — eu nunca soube muito bem fazer essa diferenciação — conseguem encontrar, a despeito da morte ou de seu prenúncio, pretexto para se refazer.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Talento humano

Antonio Berni, pintor argentino

Quase ninguém costuma questionar a validade das manifestações humanas desencadeadas pelas catástrofes, a ponto de nos flagelarem e de nos autoflagelarmos, se não nos sensibilizamos por essa ou aquela tragédia. Por essa ou aquela dor.
— Você não ficou sabendo???
Nunca deixei de ver, amiúde, multidões de interessados pelo drama alheio. Tropas que sustentam profissionalmente uma atmosfera chorosa que se atualiza sempre e quando um de nós se dedica a contá-la, revivê-la, repeti-la. Incansavelmente.
— Foi horrível! Nem te conto! Um horror!
Desenhamos caretas de repúdio, nojo, asco, pena, piedade, compaixão... Lista de sintomas que não deixam dúvidas de que temos sentimentos, de que nos preocupamos, nos implicamos com o outro. Nos implicamos? Ou implicamos?
— Noooooooooooooossa Senhora! Como isso aconteceu?
— Você não ficou sabendo? Tão moço, ainda. E deixou três filhos pequenos... Um dó!
Encenamos os mais variados textos e os repetimos, quantas e quantas vezes seja necessário, pra contar e recontar o que nos chocou, sangrou, doeu... aquilo que nos exigiu renúncias ou a aceitação de perdas, recuperáveis ou não.
            Passamos boa parte de nossas existências ocupando-nos em gotejar o fel desses pequenos ou grandes dramas. E, sem perceber, moldamos nossas feições, cada linha de expressão de nosso rosto, ao compasso desse disco arranhado.
Quanto talento pro sofrimento!!! E quantos súditos aumentam a legião dos que perpetuam as tragédias em lembranças que não descansam.
Sabemos, com destreza, a melodia que devemos imprimir às nossas vozes e dominamos bem o que fazer com nossos olhares...
Mas tanto talento humano pra revolver o purulento não parece ajudar na hora em que nos defrontamos com sorrisos, abraços e gestos de carinho. Os naturais ou os propositalmente encenados.
É que, em BH, há um senhor que faz caminhada na Avenida Bernardo Vasconcelos... Que leva, durante todo o seu percurso, um sorriso enorme estampado na cara. O mesmo sorriso grande dessas máscaras de papel que encontramos pra comprar pras festas à fantasia ou pro carnaval. O dele, no entanto, ainda que aparentemente estático, já que não descansava um só instante de sorrir, tinha força suficiente pra deixar o sorriso, o olhar, o passo de que vinha em direção contrária a dele, incluindo a mim mesma, sofrerem momentos de intenso desconforto.
Que resposta se dá ao sorriso sincero de um desconhecido? Sorrir de volta? Abaixar a cabeça, consultar o celular, o relógio? Desviar o olhar, amarrar o tênis, passar as mãos pela cabeça e piscar profundamente, num tempo exato para abrir os olhos e não ter mais a demanda de sorrir de volta?
Vacilo.
Se há tanta aptidão, inclusive inata, para se indignar com a dor dos outros  — que levam curiosos a se amontoarem ao redor de cadáveres suicidas, atropelados, enfermos (vulneráveis em sua estaticidade de sangue e pele) —, por que não teríamos capacidade para lidar com um “inofensivo” sorriso???
Só sei que sua alegria me incomoda... mais, até, talvez, do que se eu o visse atropelado na tal avenida. Porque, diante da segunda, automaticamente, saberia como me comportar. Mas, diante de sua alegria (senil? pueril? de louco?), continuo me valendo de mil e um subterfúgios pra não encará-lo.
Mas tenho feito progressos. E me alegro com isso.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Gangrena

Pablo Picasso, pintor espanhol

A gente sabe que é preciso amor pra poder pulsar, mas sabido também é que uma andorinha sozinha não faz verão.

Um dos grandes males que assola a humanidade talvez seja se crer acompanhado quando na verdade se está é completamente só. Ou se achar irremediavelmente sozinho quando há, ao contrário, um mundo de possibilidade nos espreitando. Vinte e quatro horas por dia, incluindo o tempo dos sonhos nonsenses e dos supostos pesadelos. Chamando nossa atenção com letras maiúsculas em neon verde limão.

Mas como nada é perfeito, e para dar um leve toque de drama novelesco, quando acreditamos estar numa posição, na verdade, estamos é na outra. Perdendo tempo, energia...

Tratando ferida com ácido sulfúrico.

Mas que bom quando se percebe o estorvo ou a dádiva antes da gangrena. Porque, do contrário, não há remédio que dê jeito: ou amputa-se o troço morto que se liga à vida ou emputece-se para todo o sempre.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Me preocupo com o afeto

René Magritte, pintor belga


Se nós não sabemos o que somos,
como sabemos nós o que possuímos?
Fernando Pessoa


Não é medo de se entregar não. Não se trata disso.
Nunca houve tanta exposição. Tantas oportunidades...
Nunca houve tanta vontade em se lançar nas experiências. Inclusive nas — digamos assim — bizarras.
            O inusitado foi extirpado em favor dessa urgência em ter. Podemos tudo agora!!!
E temos?
E quem se recusa a se atirar nessa aventura contemporânea precisa se contentar em trocar figurinhas com a solidão. Assumir publicamente essa amizade, mesmo sob pena de se passar por depressivo.
Mas será, mesmo, desejo o que nos move?
Entreditos, não-ditos, insinuações... Que saudade dessas coisas!
E essa insistência em provar tudo, com tudo, por tudo... E pra ontem!
Nunca o corpo esteve tão ao alcance de nossas mãos. Escancaradamente disponível.
E nunca a alma esteve tão longe de tudo isso...
Quer saber?
No fundo, mesmo perseguindo-os, ninguém gosta de atingir limites.
Porque chegar é alcançar o fim da estrada. E a constatação da inexistência das curvas... Dessa curvatura que pressupõe deter, ao mesmo tempo, o conhecido e o desconhecido, o esperado e o inesperado, onde depositamos expectativas, anseios..., lugar das promessas (as que se cumprem e as que não)... que modela(m) nossos corpos ao sabor de arrepios, espasmos, taquicardia..., ainda me faz crer na beleza da entrega.
Daquela que se dá na medida exata.
Na medida exata de nossas dúvidas. De nossas incertezas...
Por isso, me preocupo com o afeto...


Sentido

Michel Duchamp, artista francês

            Há mais de 30 anos, minha mãe faz unhas.

Antigamente, para sustentar duas filhas menores e, hoje em dia, aos 66 anos, por razões, a meu ver, bem mais complexas.

            Semana passada, ouvi, atenta, uma aluna confessar: “Pensei muito durante esses dias... se deixaria ou não de fazer as aulas, mas,... sabe, Ju..., não posso!! É que isso tem um sentido pra mim... que... vai além do...”. E, com os olhos marejados (os dela), lhe dei um abraço forte, sorri orgulhosa e disse: “É que amo tanto...”.

Dias depois, observando a paciência e o apreço que um senhor, vizinho meu, tinha para tampar, com uma massa corrida que escorria sem cessar, oito pequenos buracos feitos na parede da minha sala, foi que entendi que não deveria me desesperar por levar horas para redigir, decentemente, um único parágrafo dos textos que escrevo.

Vendo-o movimentar, sucessivas e incansáveis vezes, a espátula, com e sem massa (pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo...), pra cumprir sua tarefa e eu, diante dele, me digladiado com um verbete mais adequado daqui, uma pontuação melhor empregada ali, para finalizar um artigo, sorri, silenciosa.

Dedicação pede disposição.

Será essa a razão que levaria Antônia, uma das tantas clientes da minha mãe, há mais de 15 anos, a fazer as unhas com ela? Serão mesmo apenas mãos que ela coloca, semanalmente, sobre aquela velha e resistente mesinha de manicure?

E seria tão-somente pelo dinheiro que a gotosa da minha mami leva, às vezes, mais de 3 horas para fazer os pés e a mãos de uma única cliente???

            Suspeito fortemente, porém, que essas razões não se assemelham em absoluto à que levará o filho de outra de suas clientes se, no futuro, fizer Direito, e não Educação Física. Porque dedicação pede amor, independente do status financeiro e social da profissão. O mesmo amor que me leva a chamar de “anjo” uma profissional maravilhosa chamada Cybele Guimarães Chaves.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Tentativa

Marina Abramovic, performer iugoslava

Mal entendia sua própria vida. Mesmo a perspectiva mais visível e explícita de sua existência.
E oprimida se sentia, por ter que explicar, reiteradas vezes, as razões que ainda a prendiam a ele.
— Preciso me respeitar. — justificava inutilmente.

Como tentar ser compreendida se nem, ao menos, era capaz de entender os motivos que a levavam a adotá-lo como seu companheiro diário?

Envolta sob um véu de melancolia, arrastava seu corpo pela casa, como se, nessa tarefa, apostasse todas as suas forças. Por isso, se esforçava para não ficar muito tempo com seus amigos mais próximos. Temia ver-se obrigada a levar adiante essa transfiguração absurda e inútil.

E frequentes eram os apelos que tentavam retirá-la desse universo feito de nostalgia e silêncio e reinseri-la no mundo prático daqueles que têm soluções e justificativas para todos os dramas alheios. Menos para os próprios.

Mas ela...

Ela mal, e sem muita habilidade, se suportava. E entre uma e outra crítica, entre um e outro sermão (sempre movidos por excelentes intenções, admitia), suspirava com a convicção (dolorosamente digna, Deus!!!) dos fracos: “— estou tentando...”.

Mas sabia...

Sabia que, antes de qualquer coisa, precisava responder para si mesma um questionamento que adiaria (para sempre???) sua inserção nesse universo ultraprático regulado pelos botõezinhos on e off :

— O que fazer quando o afeto [seu ele] resiste a dar lugar ao rancor?


domingo, 22 de julho de 2012

Restos



Nada mais patético que não saber o que fazer com as sobras — pensava irresoluta.
Era inevitável se rebelar contra essa realidade. Elas sempre existiriam. Como protagonistas ou coadjuvantes; pouco importava. Sempre estariam lá. Sempre.
Mas necessidade havia de lhes dar um lugar. Um destino. Um fim. Ou um começo. Talvez.
Lixo!!! — diriam muitos de seus amigos, em coro uníssono.
Sabia, porém; ou melhor, estava convicta: as coisas não eram tão simples assim... O destino delas, de todas elas, não poderia ser só um. Só esse.
Afinal, se sentia irremediavelmente unida a elas. Mesmo que dela fossem arrancadas, voluntária ou forçosamente.
Porque, sem mim, não seriam exatamente sobras. Porque, sem elas, não poderia ser precisamente eu — dizia.
Afinal, eram tantos os tipos e de tão diversa natureza provinham elas que não, não dava pra reduzir a complexidade do universo desses resíduos — parte de sua humanidade — em um cubo fedorento de plástico, em sacolas de supermercado ou nesses quartinhos, úmidos e cheios de mofo, debaixo de escadas.
Por isso e por outras coisas, reciclava. Assim, sua relação com as sobras (pelo menos com as que irremediavelmente parariam no lixo), não se basearia estritamente nessa lógica reducionista do “elimine”. Separando-as, conseguia ver como se construía diariamente. De que medicamentos, embalagens de compras, de alimentos, de correspondências era feita. E como se tornava cada vez menos o que, nas sessões de psicanálise, dizia querer ser.
E notou que, analisando o caráter de algumas dessas sobras, poderia ter uma dimensão menos obscura de como se sentia. De como se reduzia.
O ralo, por exemplo. Durante meses, não via tantos fios de cabelo ali.
— Normal — diriam muitos. Você tem um cabeleira de dar inveja. E é mesmo necessário que alguns fios caiam, para que outros possam nascer.
Mas ela sabia que não era a diminuição das embalagens de Puran T4 em seu lixo que justificaria tantos fios se espalhando pela casa. No chão, entre roupas, no teclado do computador... Elas continuavam sendo consumidas e eliminadas na quantidade prescrita.
Não poderia ser por isso — refletia.
Aí percebeu.
Claramente.
Que eram outras sobras — ainda não eliminadas, muito menos recicladas — que fazia a produção de outras tantas, como seus fios perdidos, aumentar descontroladamente.
E se indignou.
Porque, ao contrário de outras, não poderiam ser, por meio de um generoso gesto, encaixotadas e doadas para alguma instituição de caridade.
Teria que mantê-las consigo, como essas sacolas de plástico nojentas que levam milhares de anos para se desintegrarem.
A diferença é que essas últimas, ao menos, e mesmo que tardiamente, custavam, mas tinha uma previsão mais ou menos delimitada para desaparecerem. E quanto às primeiras?
Um temor percorreu, gelidamente, sua nuca: o de ficar careca antes que isso acontecesse.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Celebrar

        Van Gogh, pintor holandês
       
         Parece haver pouquíssimas dúvidas, quando o assunto é celebrar. Pensa-se no outro, com quem dividir o brilho da novidade, com quem compartilhar a satisfação da notícia que, de tão gorda, não pode caber senão em nós e no outro, simultaneamente.
Já se viu guardando uma felicidade só pra si? Ato egoísta, diriam muitos. Mas e se não houvesse com quem partilhar? E se a celebração — longe de significar altas taxas de álcool no sangue, batidinhas nas costas seguidas de um sem-fim de expressões-chave que, de tão repetidas, coitadas, não extraem da gente senão um frágil e, também, ensaiado agradecimento —, por um instante, fosse compreendida menos como uma oportunidade de ser reverenciado e mais como a chance de doar? De doar-se?
É que, ontem, esforçando-me por vencer o que para mim nunca foi algo costumeiro, tentei celebrar uma boa-nova. Repassei rapidamente os personagens (antecipando, mentalmente, o que resultaria como resposta ao convite) e escolhi o primeiro deles: uma amiga. Das antigas.
E foi tentando, timidamente, sustentar o discurso do tim-tim que me vi deslocada, bruscamente, para uma dimensão na qual não contava, definitivamente, estar naquele momento: a dos que retiram a vela dos ombros e a colocam diante dos olhos.
Foi assim que percebi. Foi assim que me percebi. Vi que a celebração dessa minha alegriazinha tinha que acontecer de um jeito diferente. E que o lugar dos que comemoram bem poderia ser o lugar dos que estendem o coração e se dispõem a um nada que, de tão besta, bem que pode resultar no sossego feliz de um corpo prestes a passar por uma intervenção cirúrgica.
Não satisfeita com essa constatação, pensei: abro uma cervejinha, fico feliz e continuo buscando um meio de celebrar... Eis que, aproveitando pra resolver um outro nada com uma vizinha, vejo-me diante de uma mulher visivelmente cansada, humilhada e ferida (moral e fisicamente). Que, em poucos segundos, resumiu sua dor (gigantesca, certamente) em duas ou três lágrimas.
Estendendo dois braços vacilantes em sua direção, vi que o melhor era optar pelo suco que tinha pronto na geladeira, por um guardanapo e pelo meu silêncio. Foi o que fiz.
E celebrei.
Celebrei uma alegria distinta. Muito mais reservada do que aquela que residia em meus pensamentos antes de eu ligar pra minha amiga, antes que tocasse a campainha da casa da vizinha ao lado. Uma alegria sem paetês que me mostrou que deslocar meu olhar para fora de mim mesma poderia significar uma maneira outra de celebrar a dádiva recebida.