quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Que ilha que nada!

Banksy, artista britânico

Não. Não se trata de viver como um náufrago que interage com cocos e peixes. Que, no máximo, se socializa, primitivamente, com um ou outro bicho selvagem.
O que busco são ilhas efêmeras. Só isso.
No entanto, constato estupefata, que sem a ajuda de tampões de ouvido, máscaras para os olhos, cortinas em janelas que dão para outras janelas, secretárias eletrônicas e a velha e conhecida desculpa social (esfarrapada na maior parte das vezes) não passaremos de fantasmas insignificantes vivendo à mercê das taras, fissuras e caprichos alheios.
Tá, já sei! Logo virá o cordão que puxa o coro dos que nos julgam como antissociais, esnobes, mal-educados. Autistas, às vezes.
Não, gente. Não é nada disso. É só desejo de dormir – uma noite, depois do almoço ou talvez uma manhã inteira – de sono tranquilo. Sem recorrer a calmantes ou outros subterfúgios industrializados. De deixar as janelas de nossos lares escancarados e não se importar, ao menos uma vez, se nos tacharão de loucos por andarmos pelados pelos cômodos de nossos lares. De não irmos a TODOS-OS-EVENTOS-SOCIAIS-QUE-APARECEM simplesmente porque há motivos para não irmos e nem sempre fica de bom tom ser completamente sincero.
Esse recorrente desejo humano de ilhar-se parece ter menos a ver com alegria, felicidade e plenitude de uma vida pacata a la “Lagoa azul” (Brooke Shields, saca?) que com uma necessidade primária de se ver longe (por um curto espaço de tempo ou pela vida inteira) do zum-zum-zum, do furdunço, do auê provocado pelo meu próximo.
Só um exemplo. Prometo não render. Noite de carnaval, Baiúca, gente saindo pelos poros... Eu lá, tentando interagir. Patético, admito. Sinto um respingo em meus pés. Olho pro lado. Cena: um cara tonto, pênis na mão, amparado por três amigos igualmente embriagados... Mijando literalmente em mim.
Ok, ok, ok! Bora lá: vou não, quero não, posso não...
Antes fosse só isso... Minha pálpebra pula ao me lembrar. E me dou conta, de repente, que meu corpo tem uma capacidade mnemônica porreta que me recorda, em flashs curtos, ao longo do dia, que por mais que tenha me livrado de certos grilhões que me acorrentavam compulsoriamente à sistemática social em que estava inserida, serão outros aos quais terei que me prender.
E pensar em quais serão já me deixa num estado de pânico latente.
Tá certo. Eu sei que construo e reconstruo o que sou na interação com o outro. Que me dou conta de quem provisoriamente sou a partir do olhar do outro, da convivência com ele, etc e tal. Mas cá pra nós: férias do “outro” não seriam um direito inalienável de todo ser humano não, hein?
Que ilha que nada! Eu quero é a capa da Sheila do desenho Caverna do Dragão!

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

SRD

Magritte, artista belga




Só sendo de raça mesmo pra alguém te querer.

Ser SRD (Street Real Dog, nos termos de um certo Barbosa, ou “Sem Raça Definida”, nos das associações protetoras dos animais), nos tempos atuais, é o “pior que tá tendo”...

Experimente entrar em qualquer sala de bate-papo, pra ver. Se você não diz (mesmo sendo mentirinha) sua idade, sexo e bairro, o povo nem conversa com você. Te dá o end antes mesmo de saber se você é uma pessoa legal. Elementar! Afinal, essas três perguntas definem tudo o que somos; não é mesmo? Pra quê saber mais???

Mas, se digo “mulher”, o que é mesmo que quero dizer com isso? Que tenho uma vagina que gosta de pênis? Afff!!! Se respondo Bairro Anchieta, logo existo?

Fico aqui pensando que poderia haver um meio-termo nisso tudo... Uma idade neutra, um sexo neutro, um bairro neutro. De tal maneira que quem estivesse do outro lado da telinha pudesse parar um minutinho pra pensar e fosse levado(a) a formular novas perguntas.

Dessa classe de pergunta cuja resposta fosse “cheiro de terra molhada”, por exemplo.



Gilete cega

Banksy, artista britânico


Sufocar um sentimento é sempre um suicídio frustrado: gilete cega que nunca acaba de cortar.

Fora do ar

Francis Bacon, pintor anglo-irlandês

Não! Eu não preciso de férias! Eu preciso é sair do ar. Assim, literalmente.
Apagar-me temporariamente e retomar a vida como se nadinha tivesse acontecido.
Não ter que me alimentar, evacuar, urinar, dormir... Nada disso!
Preciso que o orgânico que há em mim me dê um time. Me esqueça, por um tempo. Gostaria que a tristeza, a decepção, a descrença, a mágoa não precisassem do esforço da minha racionalidade quadrúpede para ignorá-las e transformá-las em flor.
Tipo o caso de uma TV que minha mãe tinha. Nem me lembro da marca. Ela não funcionava. Nem a pau. Às vezes, emitia um ou outro som, mas imagem, que era bom, nada! E pra que serve uma TV sem imagem e só com chiados? Pra nada; né?
Pois a pobre foi levada ao conserto e lá ficou por longos 3 meses. Depois de um tempo, não mais tão necessária, já que substituída por outra nova, minha mãe resolveu ligar pra saber da coitada.
O moço da eletrônica disse:
— Nossa! Nem tive tempo ainda de olhá-la. Mas amanhã mesmo farei isso.

No outro dia ele liga e, sem conseguir dar maiores explicações, declara:
    Eu a levarei amanhã de volta pra senhora.
— Mas, afinal, o que ela tinha?????
— Não tenho a menor idéia! Apertei o botão do power e ela funcionou.

Acho que essa televisão sabe o segredo de como conseguir o que ando desejando. Ah, se ela pudesse me dizer!!!!

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Gozo interrompido



É difícil expressar o que se sente ao ver uma joaninha. Sim! Daquelas vermelhinhas com bolinhas pretas. Inevitável querer se aproximar e deixá-la percorrer nossa pele, entre pontes de braços e dedos infinitos. Vê-la avançar e avançar, sem destino, apenas sob a luz de um sorriso pueril que não quer largar o brinquedo enquanto ele não estraga ou enquanto não vem alguém para nos dizer: basta!                       
O problema é quando a espera do dedo supera a inércia inicial do pequeno inseto. Sempre tão rápido, tão disposto a repetir e repetir os mesmos centímetros epidérmicos, capturando ohs dos que nunca experenciaram uma fragilidade rubro-móvel tão de perto. Infinitamente vulnerável, mas poderosamente doce. Vida no pulso, que sucumbiria tão somente com a pressão mortífera de um polegar.
Não! Nem campo aberto para o assassinato poético, tampouco para um doce remember, viagem ao quintal da infância, entre formigas, minhocas e outras joaninhas. Muitas. Tantas. Poesia cotidiana. Sem ais, nem ohs.
Como agir diante de uma joaninha já morta?
Aceito sugestões.

Depois do carnaval


Se...

Se fica a tristeza ou a lembrança do tão esperado ou do tão imprevisível encontro...

Se fica o cansaço da folia, a dor de cabeça que lateja de 5 em 5, o corpo exausto pela entrega ao ritmo, ao sabor, à saliva, à cevada...

Se fica o adeus de um amor fugaz ou de outro que pretendia fixar-se...

Se fica o cheiro à urina, a lixo acumulado nas ladeiras, nos cantos, nos rincões: rastros do descaso, do consumo, do esbanjamento de corpos que comem, se exibem, se comprimem e se deprimem...

Se fica o desejo correspondido, o frustrado, o recalcado, o resignificado em dezenas e dezenas de copos de plástico que ora funcionam como um subterfúgio para a solidão, ora como um mero recipiente de líquidos (não importa a natureza, desde que sejam boas muletas pra escorar a dor ou a vontade)...

Se fica a nostalgia do ritmo sexual, do cardíaco, do etílico...

Fica...

Fica também o alívio de saber que terei parte de minha vida de volta. Móveis, livros, utensílios, roupas, objetos: signos que compuseram uma história necessária e árdua que estruturará outra (tão distinta, meu Deus!!!) que, em breve, começará.

Fica a certeza de que depois deste carnaval virá algo novo. Um algo diferente desta certeza mesquinha que transformou a festa carnavalesca deste ano em um mero rito de passagem.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Felicidade como projeto



Certeza havia quanto a deter um par de coisas pra conseguir fazer outras tantas. De reunir uma e outra condição para se aventurar a romper a tal cerquinha que divide os bons dos bois. Dos bois de carga, diga-se de passagem.
 Por isso, reconhecia a necessidade diária de perpetrar uma desconstrução, como projeto permanente, de uma série de hábitos (inclusive quando se sentava à mesa, com alguns amigos, para compartilhar um simples almoço de segunda-feira).
Um cactus no meio de um resto de Mata Atlântica (mesmo que irrisória e escassa em sua exuberância tropical) podia ser uma piada de mau gosto. E o que menos desejava era que essa diferença fosse entendida como algo fora de tom. Tinha clareza das diferenças e não queria tomar isso como um discurso vitimista pra se justificar. Pra ser considerada.
Por isso, resolveu, propositalmente, superdimensionalizar sua rotina. E tomar a felicidade como projeto. Observava tudo como uma criança que recém descobre que as coisas têm nome. E se esforçava, mesmo que parecesse pueril, para aprender, para conhecer. Não se importando nem um pouco em confessar, por vezes: “Não, não sei o que é”, “Não, não conheço não”...
E se estivesse ao lado de alguém que se dispusesse a explicar, a dividir, a sair, ao menos momentaneamente, desse lugar adocicado dos que sabem mais, conhecem mais, viram e sentiram mais? Seria tão bom! Tão bom!!!
Por isso, vez ou outra, soltava: “Me aplica?” “Me ensina?” “Compartilha comigo?”.
— Mas o quê?
— O quê? Uma música que você goste muito. Um filme bonito. Um texto ou uma sensação que não sei se poderia vivenciar se você não estivesse aqui. Se, nas minhas andanças, não me deparasse com você; entende?
E, mesmo que a lógica seja pautada na filosofia capitalista do toma-lá-dá-cá, eu me viraria. Trocaria esse seu desprendimento quixotesco de me hospedar em seu apartamento por alguns dias em minha casa, por uns CDs interessantes que outro, outrora, me oferecera — nem sei bem porquê —, pela minha admiração e amizade, pelo... pela... por nós, assim, mais perto, mais... Acompanha? Cantando juntas uma canção dos Los Hermanos ou curtindo, sem nada nas veias, além de uma sensibilidade pulsante, um céu arreganhadamente estrelado, numa cidadezinha do cerrado mineiro.
 Trocaria, por exemplo, alguns desses seus filmes (dezenas deles sobre os quais nunca ouvi falar) por uma paella de costelinha de porco que sei fazer. O que me permitiria trocar definitivamente esse lance estéril (espinha de peixe na garganta) que me obrigava, vez ou outra, a ter que agendar uma cerveja com dois meses de antecedência. A amar com hora marcada.
Trocaria você por mim, por uns instantes, só para que eu tivesse a chance de ser mais, de ver mais, de sentir mais, de (me) perceber cada vez melhor. No tempo exato para que deixemos de ser o que somos, sozinhos, para sermos um nós pluralizado de alteridade. E, alimentando esse outro, modificarmos o nosso próprio eu e esse nosso efêmero estar no mundo.
Topa?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Lêndeas e cafunés



Uma das boas lembranças que tenho de minha infância tem a ver com a hora que chegava da escola e minha mãe, com suas unhas grandes e, quase sempre vermelhas, me fazia deitar a cabeça em seu colo e, com um pano branco, catava meus piolhos.
Seu sangue é doce, menina. Nunca vi igual! Por mais que eu cuide, por mais que vá com os cabelos presos e limpos, você sempre chega em casa infestada deles. Uma praga!
Inclino a cabeça só de me lembrar.
Mas ela gostava que eu os pegasse e, dizendo honestamente, eu também. Revendo a cena do filme O Fabuloso destino de Amélie Poullain, de Jean Pierre-Jeaunet, na qual o coração da protagonista, quando criança, sempre se acelerava de emoção quando seu pai, que era médico e com quem quase nunca tinha contatos físicos, checava seus batimentos cardíacos. A personagem, ávida por um lance, ainda que estetoscópico, de contato paterno, não podia se conter. Seu corpo se alterava.
Minha mãe, nessa mesma época, nos pagava dez centavos por cada fio de cabelo branco seu que arrancávamos. Minha irmã e eu, obviamente, só pensávamos no dinheiro e o que podíamos fazer com ele. Ela, nas delícias do cafuné comprado.
No filme de Nelson Peireira, Vidas Secas, em meio a tanta miséria, pobreza e fome, não pude deixar de relembrar a sensação das mãos de minha mãe tateando minha cabeça em busca de lêndeas. A cena da esposa de Fabiano catando piolhos em um de seus filhos, para além do asco que essa ação poderia pressupor no espectador, transmite uma dimensão absurdamente poética do encontro. Do toque. Do carinho que preenche tudo, que acalma e suspende a dor.
Solto meus cabelos ao recordar.
Hoje, aos 68 anos, seu pretexto mudou: cravinhos no rosto. Eu, aos 34, vou variando entre pedir que ela arranque os fios brancos que começam a aparecer nos meus cabelos, que faça banho de creme pra hidratar os fios ou, ainda, sendo mais direta, lhe pedindo:
_ Mãe, faz cafuné?
Mas o que eu queria mesmo, pra ser sincera, era a voltar à época das lêndeas! Carinho diário, sem direito à reclamação.
Tempos bons!

Coisas de príncipes e sapos...




           Em sua infância, desnudar seus pés e voltar para casa com o corpo vestido de pó de asfalto e poeira e com a alma cheinha de um cansaço feliz que só os bem pequenos sabem suportar era coisa habitual.
Talvez por acordar sentindo inveja desse si próprio, por vezes presente em suas recordações, tenha se decidido. E, com o olhar muito mais alerta do que provavelmente levaria quando roçava, passo a passo, a dureza do chão de seu passado, caminhava, altivo, sob os olhares incomodados dos que com o dele cruzava. Olhares que, vacilando em se decidirem entre a sanidade, garantida pela camisa social, e a demência, pelos pés pornograficamente desnudos, ainda se voltavam, de costas, para se certificarem de que a cena, de fato, não se adequava ao personagem, tampouco à ocasião.
O segundo, por insistir em apagar, a cada gole, cada um de seus sonhos (de adulto, de menino, de humano???), usava sapatos. Do tipo social. E, com pouca habilidade, confessada por olhos que só miravam o chão, tentava ocultar em suas mãos a razão líquida que tornava seus pés muito menos convictos que os outros que por ali passaram. Mas que, muito provavelmente, o ajudavam a manter seus pés (e talvez sua vida) dentro de sapatos de couro.
Mas havia outro... cujos pés, ainda sem uma forma visível, e com um olhar, de igual modo, ainda sem brilho e cor, percorriam (descalços??? calçados???) um caminho absurdamente perigoso. Feito de desejo e cicatriz.
Qual deles seria, de verdade, um príncipe? Porque sapos... Não! Sapos não poderiam ser, porque esses já fixaram residência, há muito, em um sem-fim de gargantas.