domingo, 23 de setembro de 2012

Luto


fotógrafo desconhecido

Minha irmã me ligou hoje dizendo que estavam de luto.

Elizabeth havia morrido durante o parto. O segundo, coitada.

Meu sobrinho, inconsolado, não quis nem falar comigo pelo telefone. Melhor assim, pensei. Não gostaria de tentar tirá-lo de sua tristeza porque ele precisaria dela pra poder compreender (será que isso se compreende?), ainda que levemente, que o universo feminino é muito complexo. Justamente por conter, de modo irremediável, coisas demasiado duras e outras, assaz delicadas.

Me explico. Antes de Elizabeth morrer, um dia ao acordar, olhei pra gaiola e vi a seguinte cena: no tubo colorido, na parte mais alta dele, estava Arthur, seu digníssimo esposo, roendo, solitário, embora freneticamente, seu amendoim. Seu breakfast de hamster rei.

Na parte inferior do tubo, os cinco filhotinhos, ainda com aquela pele esquisita sobre os olhos que os faziam mais parecer girinos, se digladiando para, como bebês famintos, tomar, como o pai, seu café da manhã.

Elizabeth paradinha, se mantinha firme. Será que também sentia fome?

Nem quis olhar pros olhos dela... Ri por dentro e soltei, lembro-me bem, a seguinte frase: “O mundo animal imitando a vida humana!” E desci, ironicamente, pra tomar meu café da manhã.

Chore mesmo, meu amor. Mas sorria. Sorria porque mesmo morta, Elizabeth foi e sempre será rainha. Não foi esse o motivo de você ter escolhido o nome dela? Rainha porque, como todas as fêmeas do mundo, é forte, é guerreira e aguenta firme muito rojão. Embora, seja, como todos os seres vivos, machos ou fêmeas, frágil, frágil a ponto de ter, quando uma força muito devastadora chega, que ceder ao cansaço e dizer adeus.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Suicídio


Marina Abramovic, performer iugoslava

Bom é dizer o que se sente, mesmo que na hora exata do dizer arranhe aguda a intuição de que tenha sido precoce demais.

Bom também, depois disso, é confessar-se vítima da palavra precipitada que precipitou, sem dó, o corpo no vazio da ausência que grita silenciosa pela textura de um outro corpo... Corpo cujos suspiros, hoje, pela insistência em não ser sincero consigo mesmo, são, linhas tênues que se suicidam paulatinamente no desejo reprimido pela sinceridade malsã. 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Opacidade

Gustav Klimt, pintor austríaco

Convivia cotidianamente com a complexidade e até ousava, vez ou outra, apontar respostas. Provisórias e necessárias, para garantir o que lhe garantiria a sobrevivência.

Física.

Quântica.

Líquido vital extraído a despeito do seu querer (nem sempre queria...) e que a levaria, quando tudo aquilo terminasse, enfim... a um lugar onde o cálcio seria o mesmo, mas o negrume daquilo que os tinha envolvido, em vida, não havia sido elo de absolutamente nada. Não passava de uma semelhança incômoda.

E antes mesmo que emitisse seu primeiro suspiro de terror. O primeiro de tantos outros que ecoariam ininterruptamente e simultaneamente na epiderme salítrica desse lugar (da irregularidade das pedras e do medonho excesso de janelas)... Pra quê tanta janela, meu Deus? Se o que mais queria era ser menos... menos... cada vez menos...

Dessa náusea de se sentir nua neste inverno cortante sob o qual a herança do verbo (oral, natural, maldoso — muitas vezes — ingênuo, curioso...), alforriado dos grilhões da discrição médio-burguesa, tece, afiado, afinado, camadas e camadas de tecidos inúteis sob a pele. Difíceis de renovar.

Suspiros que ecoariam também — percebia, percorrendo o circuito sinuoso do caminho — no olhar curioso da moça lavando roupa no Rio Grande de concreto. Sem saber, por razões que muitos de nós já sabemos, que entendemos, que contamos, que ...

... que, subindo um pouco mais pra olhar e se olhar (lá do alto... e no alto...), não veria nada além de uma película opaca que irritava a simetria mofada daquela paisagem barroca. Barrosa. Borrosa... 

domingo, 9 de setembro de 2012

Silêncio azul

Sara Takahashi, fotógrafa amadora

Acho que foi lendo um livro do Rubem Alves que, pela primeira vez, pensei sobre a falta de habilidade com que o ser humano lida com o silêncio.
Sobre essa perseguição, muitas vezes inconsciente, que perpetramos contra essa ausência sonora absurdamente cheia de significados... recusando-nos a senti-la pela crença equivocada de que a palavra falada deva, sempre, preencher o espaço-tempo de nossa existência.
Mas, ontem, conheci um homem silencioso.
Silêncio de olhos azuis.
Olhar que me pareceu há muito haver-se rendido (por opção ou por falta dela?) a uma sonoridade interna absolutamente distinta daquela que o rodeava. Feita de ruídos de visitas que chegavam e partiam; que entravam e saíam de seu quarto, de conversas na cozinha, ao seu redor...
Silêncio que, a despeito de tudo e de todos, mantinha-se absurdamente sereno. Terno. Ainda que toda essa ternura se voltasse, resignadamente, para o chão. O que me deixava convencida de que havia um turbilhão ainda maior de significados nesse gesto solitário. Contraditórios, fugazes... Mas plenamente convictos. Essa certeza eu tinha!
Foi quando senti pena.
De mim.
Pena, por saber que ainda precisarei que meus cabelos fiquem da cor dos dele, pra eu conseguir roçar essa sabedoria que faz com que quem o conheça se sinta, inevitavelmente, mais frágil do que ele.  

Um motivo para reciclar o lixo doméstico


Já viram um homem, entre papéis higiênicos sujos de bosta, restos de comida e outras sobras, separando garrafas PET, latinhas de alumínio e papéis para se manter vivo?
É indigno!

sábado, 1 de setembro de 2012

Pedigree

Bunsky, artista britânico

­ _ Quanto custa um cavalo?

_  Cavalo?

_ Antigamente, com R$500,00 se comprava um.

_ E o amor?

_ O amor? Uai... Antes, não havia preço; hoje, costumam trocá-lo. Acho.

_ Trocá-lo?

_ É! Meia horinha de coração disparado, tremor de mãos e sexo suficientemente lubrificado, indícios frequentemente relacionados ao amor, troca-se por total discrição, desprendimento afetivo e desapego emocional.

_ E isso é mais vantajoso?

_ Suspeito que ambas as partes acabam perdendo, mas enfim... é o que há disponível no mercado no momento. É pegar ou largar pra lá, entende?

_ Mais ou menos.

_ E cavalo, hoje em dia?

_ Depende. De raça ou tipo pangaré mesmo?