segunda-feira, 30 de abril de 2012

Azul-fálico


Marc Chagall, pintor bielorusso


Foi numa exposição de arte que uma amiga minha proferiu dita expressão.

— É Juju; olha essa gravura. É de um azuuuuul...

— Mas por quê fálico? Não entendo...

E caí na gargalhada.

Quase nos expulsam do recinto.

— Olha direito. É um azul chapado, sem profundidade. Sem nuances...

— ...

— Percebe?

— ?????

Fiquei olhando igual besta pra tela e só conseguia relacionar a adjetivação inesperada do tal azul com os formatos (esses sim, eram fálicos) de uma e outra imagens que apareciam na obra.

Continuei olhando. Eu e ela. Eu, rindo, compulsivamente, e ela se esforçando pra manter a coerência de sua argumentação.

É que ela é artista plástica, ilustradora, pintora, desenhista... e eu precisava, de qualquer maneira, dar a ela algum crédito.


Me esforcei à beça e, finalmente, concluí:


— Se é fálico, eu não sei, amiga (vai saber quais são as suas taras ocultas!!!), mas que isso vai virar uma crônica... ah, vai!

Eu já tinha ouvido falar em azul-bebê, azul-royal, azul-piscina, azul-marinho, mas “azul-fálico” foi novidade.

Pra direita, pra esquerda, mais pra baixo, mais pra cima... rosinhas, negros, altivos, depressivos, robustos, frágeis, desanimados, “pra-frentex”, ... fálicos.

Conclusão: nunca vou entender o fálico do azul da minha amiga (afinal, são tantos os que há; né?!), mas que vou inventar um só meu; ah, isso vou!!!

domingo, 29 de abril de 2012

Amores perros


 Gustav Klimt


Já! Confesso: chorei mais por um animal que por um ser humano.

Cheguei a me autopunir por derramar mais lágrimas pela morte de uma chiuaua que pela do meu pai.

Mas é que ela tava lá todo dia. E ele não...

Mas é que ele me deixava, às vezes, com medo. E ela, ainda que tentasse, não.

Dia desses, fazia uma caminhada e vi, de longe, um mendigo, olhando fixamente para um ponto na calçada. Fiquei curiosa. Inevitável. À medida que andava, constatei que era para um amontoado de panos que ele olhava. Achei esquisito.

Mais de perto, vi, em meio àqueles panos, a carinha de um cão. Que, de tão excessivamente embrulhado, só se podia ver um focinho úmido e dois olhinhos entregues ao cansaço.

Não resisti. E com a mesma “naturalidade” que usamos pra perguntar aos nossos amigos sobre coisas pessoais, indaguei, tentando disfarçar minha apreensão: “— O que houve?”

Pausa.

Por um segundo, cheguei a me arrepender por tamanha intromissão.

E o dono, sem desviar, um só segundo, seus olhos enfermeiros do cão, respondeu, com a melancolia mais doída que senti na vida: “— Ele tá gripado...”.

Continuei andando. Mas, dessa vez, em lágrimas e pensando nessa coisa louca que é se entregar pra alguém. Pra alguma coisa.

Olhei, ainda, um par de vezes, pra trás e o homem continuava se empenhando — como se em torno dele não houvesse carros e pessoas indo e vindo — em cuidar daquele serzinho.

Dias depois, escutei estupefata: “— Por que você não morre, cachorra?”; “— Por que você não morre logo?”

Tenho pena da poodle cinza que mora aqui ao lado. Pra quem foram dirigidas ditas perguntas. Animalzinho que, muito provavelmente, não sabe o que é ser amado. E, talvez, por isso, não possa se doar mais do que, instintivamente, tenta a diário. E inutilmente.

Tenho inveja do vira-lata do mendigo que vi na rua. A poodle, se visse aquela cena, também.

Mas é melhor mesmo que ela não saiba. Porque sua dor seria maior e mais insuportável. Porque não há maneira de ser infeliz diante de uma entrega tão total. De um amor tão bonito.

Mas há um turbilhão de sentimentos aqui dentro. E chego a desejar sua morte, antes que ofertá-los pra algo (ou alguém) que não possa perceber, sequer, sua existência.

Mas aí vem a danada da Clarice e me tira desse abismo: “Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca”.

domingo, 15 de abril de 2012

Curiosidade ou cuidado

            Goya, pintor espanhol

         Tá, tá bom! Você não perde a novela das oito, mãe! Já sei disso. E não quero concorrer com ela, porque sei que acabo perdendo mesmo. Mas preciso dizer umas coisas... Coisas importantes; sabe?
           Na verdade, é uma pergunta. Simples, como simples é o amor que tenho por você: — Quando é que olhará pra mim, quando eu estiver falando com você?
          — Sabe o que é que é? É que preciso interagir com a sua retina. Com o brilho, amargo ou terno, que ela emite. Isso é essencial pra eu complementar as interpretações que faço das coisas que você diz.
          Unir o tom da sua voz, a textura, a cor e a disposição das marcas do seu rosto àquilo que sai de sua boca é, pra mim, uma espécie de experiência transcendental.
Aliás, acho mesmo que, no final das contas, me lembro mais de todas essas coisas impalpáveis, do que daquilo que sai, verbalmente, de seus lábios.
Mas fiquei chocada com o que você me disse outro dia. Não vou negar, ainda admitindo que sua argumentação seja coerente:
“— Mãe, você está me escutando?”
“— Eu escuto com os ouvidos, e não com os olhos, menina! Vê se não enche!
Mal pude esconder minha decepção, diante de tão dura verdade. Olhos veem e ouvidos escutam. Mas de onde vem, então, esse papo furado de escutar com o coração? De sentir com a alma, de falar com o olhar?
Tudo bem! Não vou te encher — pensei. Até porque forçar demonstrações de afeto dos outros em relação a nós não nos deixa assim tão plenos, né?! Trata-se, na verdade, de uma sensação efêmera de carinho que se dissipa tão rapidamente quanto a velocidade da expressão desse sentimento.

Mas, aí, o choque:
— Bom dia! Por favor, gostaria de falar com uma pessoa chamada Carmem.
— Você é a Juliana?
— Sssim. Ssssou. Uai!... Como você sabe meu nome?
— Sabia que você chegaria.
Mmmmm... Que sensação boa!

No dia seguinte, outra surpresa:

Cenário: Televisão ligada em um cômodo próximo ao da portaria.
Personagem: Diferente do que me recebeu no dia em que cheguei.
Ação: Ao descer as escadas de madeira, delatei minha presença.
            — Boa noite! Que frio, hein?! Credo!
            — Tá brabo mesmo!

            Silêncio.

— Oi mãe! Sou eu. Como vão as coisas?
— Blá, blá...
— Blá, blá...

E ele lá, no mesmo cômodo que eu. Olhando pra tevê, que estava em outro. Bem longe, até. Pra se escutar e pra se ver.
Mas, ainda que seus olhos estivessem atentos à tela, sabia que ele estava, mesmo, era prestando atenção na minha conversa. Certeza!
E que ironia! Prestando atenção justo numa conversa minha com minha mãe....

Curiosidade de porteiro, ainda mais de interior, é engraçada, pensei sorrindo mentalmente.

        Que nome dar à atenção dispensada por um estranho à minha pessoa? Que sentimento move o interesse que alguém, que nunca te viu, terá por você, pelo que você diz?
           Porque, após a chamada, ficamos proseando sobre ouvidos que doem, frio danado... E ele, então, me disse: “— Vai lá! É aqui ao lado! Eles te atendem rapidinho e te dão um remédio pra dor. Você não disse que vai ficar estudando agora de noite? Então, passa lá!

A constatação definitiva: ele estava, mesmo, escutando minha conversa ao telefone.

Mas escutava com o coração.

E essa certeza ainda não me tinha sido revelada.

domingo, 1 de abril de 2012

Entrega


Camile Claudel, escultora francesa

Impossível não aproveitar a cena para filosofar sobre vazios e ecos de esperança. Sobre esse desespero que é não conseguir dizer pro desejo que o momento e o contexto são inadequados (por Deus!!!!). Explicar pra esse turbilhão de afeto, que parece não ter a menor noção espaço-temporal, que não, não dá. Não dá!!!! Sou eu. Só eu. Eu e Baco, na melhor das hipóteses. O que complica ainda mais as coisas...

Dois são os personagens do meu quadro: um cachorrinho Basset e seu dono, um senhor de uns 70 anos. Ambos, sempre juntos, fazem sua caminhada apoteótica diária em meio a outras tantas almas que vão e vem. Movidas sabe-se lá por quais razões.

Vez ou outra, ele abana o rabo com certa inquietação e o homem, num gesto de extrema dignidade, curva-se diante desse pedaço canino de afeto. Escorando-se em suas pernas, o cachorro ganha dois ou três carícias rápidas (que, tentando verbalizá-las: parecem a gestualização de um: “— É isso aí, garoto!!! Estou aqui, cara!!!”).

O cachorro, profundamente agradecido, goza da plenitude animal (e de ser vivo???) de saber que caminhar lado a lado não é uma decisão vã, ainda que seja uma coleira de couro vermelha o elo material que os conecte.