terça-feira, 31 de julho de 2012

Gangrena

Pablo Picasso, pintor espanhol

A gente sabe que é preciso amor pra poder pulsar, mas sabido também é que uma andorinha sozinha não faz verão.

Um dos grandes males que assola a humanidade talvez seja se crer acompanhado quando na verdade se está é completamente só. Ou se achar irremediavelmente sozinho quando há, ao contrário, um mundo de possibilidade nos espreitando. Vinte e quatro horas por dia, incluindo o tempo dos sonhos nonsenses e dos supostos pesadelos. Chamando nossa atenção com letras maiúsculas em neon verde limão.

Mas como nada é perfeito, e para dar um leve toque de drama novelesco, quando acreditamos estar numa posição, na verdade, estamos é na outra. Perdendo tempo, energia...

Tratando ferida com ácido sulfúrico.

Mas que bom quando se percebe o estorvo ou a dádiva antes da gangrena. Porque, do contrário, não há remédio que dê jeito: ou amputa-se o troço morto que se liga à vida ou emputece-se para todo o sempre.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Me preocupo com o afeto

René Magritte, pintor belga


Se nós não sabemos o que somos,
como sabemos nós o que possuímos?
Fernando Pessoa


Não é medo de se entregar não. Não se trata disso.
Nunca houve tanta exposição. Tantas oportunidades...
Nunca houve tanta vontade em se lançar nas experiências. Inclusive nas — digamos assim — bizarras.
            O inusitado foi extirpado em favor dessa urgência em ter. Podemos tudo agora!!!
E temos?
E quem se recusa a se atirar nessa aventura contemporânea precisa se contentar em trocar figurinhas com a solidão. Assumir publicamente essa amizade, mesmo sob pena de se passar por depressivo.
Mas será, mesmo, desejo o que nos move?
Entreditos, não-ditos, insinuações... Que saudade dessas coisas!
E essa insistência em provar tudo, com tudo, por tudo... E pra ontem!
Nunca o corpo esteve tão ao alcance de nossas mãos. Escancaradamente disponível.
E nunca a alma esteve tão longe de tudo isso...
Quer saber?
No fundo, mesmo perseguindo-os, ninguém gosta de atingir limites.
Porque chegar é alcançar o fim da estrada. E a constatação da inexistência das curvas... Dessa curvatura que pressupõe deter, ao mesmo tempo, o conhecido e o desconhecido, o esperado e o inesperado, onde depositamos expectativas, anseios..., lugar das promessas (as que se cumprem e as que não)... que modela(m) nossos corpos ao sabor de arrepios, espasmos, taquicardia..., ainda me faz crer na beleza da entrega.
Daquela que se dá na medida exata.
Na medida exata de nossas dúvidas. De nossas incertezas...
Por isso, me preocupo com o afeto...


Sentido

Michel Duchamp, artista francês

            Há mais de 30 anos, minha mãe faz unhas.

Antigamente, para sustentar duas filhas menores e, hoje em dia, aos 66 anos, por razões, a meu ver, bem mais complexas.

            Semana passada, ouvi, atenta, uma aluna confessar: “Pensei muito durante esses dias... se deixaria ou não de fazer as aulas, mas,... sabe, Ju..., não posso!! É que isso tem um sentido pra mim... que... vai além do...”. E, com os olhos marejados (os dela), lhe dei um abraço forte, sorri orgulhosa e disse: “É que amo tanto...”.

Dias depois, observando a paciência e o apreço que um senhor, vizinho meu, tinha para tampar, com uma massa corrida que escorria sem cessar, oito pequenos buracos feitos na parede da minha sala, foi que entendi que não deveria me desesperar por levar horas para redigir, decentemente, um único parágrafo dos textos que escrevo.

Vendo-o movimentar, sucessivas e incansáveis vezes, a espátula, com e sem massa (pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo...), pra cumprir sua tarefa e eu, diante dele, me digladiado com um verbete mais adequado daqui, uma pontuação melhor empregada ali, para finalizar um artigo, sorri, silenciosa.

Dedicação pede disposição.

Será essa a razão que levaria Antônia, uma das tantas clientes da minha mãe, há mais de 15 anos, a fazer as unhas com ela? Serão mesmo apenas mãos que ela coloca, semanalmente, sobre aquela velha e resistente mesinha de manicure?

E seria tão-somente pelo dinheiro que a gotosa da minha mami leva, às vezes, mais de 3 horas para fazer os pés e a mãos de uma única cliente???

            Suspeito fortemente, porém, que essas razões não se assemelham em absoluto à que levará o filho de outra de suas clientes se, no futuro, fizer Direito, e não Educação Física. Porque dedicação pede amor, independente do status financeiro e social da profissão. O mesmo amor que me leva a chamar de “anjo” uma profissional maravilhosa chamada Cybele Guimarães Chaves.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Tentativa

Marina Abramovic, performer iugoslava

Mal entendia sua própria vida. Mesmo a perspectiva mais visível e explícita de sua existência.
E oprimida se sentia, por ter que explicar, reiteradas vezes, as razões que ainda a prendiam a ele.
— Preciso me respeitar. — justificava inutilmente.

Como tentar ser compreendida se nem, ao menos, era capaz de entender os motivos que a levavam a adotá-lo como seu companheiro diário?

Envolta sob um véu de melancolia, arrastava seu corpo pela casa, como se, nessa tarefa, apostasse todas as suas forças. Por isso, se esforçava para não ficar muito tempo com seus amigos mais próximos. Temia ver-se obrigada a levar adiante essa transfiguração absurda e inútil.

E frequentes eram os apelos que tentavam retirá-la desse universo feito de nostalgia e silêncio e reinseri-la no mundo prático daqueles que têm soluções e justificativas para todos os dramas alheios. Menos para os próprios.

Mas ela...

Ela mal, e sem muita habilidade, se suportava. E entre uma e outra crítica, entre um e outro sermão (sempre movidos por excelentes intenções, admitia), suspirava com a convicção (dolorosamente digna, Deus!!!) dos fracos: “— estou tentando...”.

Mas sabia...

Sabia que, antes de qualquer coisa, precisava responder para si mesma um questionamento que adiaria (para sempre???) sua inserção nesse universo ultraprático regulado pelos botõezinhos on e off :

— O que fazer quando o afeto [seu ele] resiste a dar lugar ao rancor?


domingo, 22 de julho de 2012

Restos



Nada mais patético que não saber o que fazer com as sobras — pensava irresoluta.
Era inevitável se rebelar contra essa realidade. Elas sempre existiriam. Como protagonistas ou coadjuvantes; pouco importava. Sempre estariam lá. Sempre.
Mas necessidade havia de lhes dar um lugar. Um destino. Um fim. Ou um começo. Talvez.
Lixo!!! — diriam muitos de seus amigos, em coro uníssono.
Sabia, porém; ou melhor, estava convicta: as coisas não eram tão simples assim... O destino delas, de todas elas, não poderia ser só um. Só esse.
Afinal, se sentia irremediavelmente unida a elas. Mesmo que dela fossem arrancadas, voluntária ou forçosamente.
Porque, sem mim, não seriam exatamente sobras. Porque, sem elas, não poderia ser precisamente eu — dizia.
Afinal, eram tantos os tipos e de tão diversa natureza provinham elas que não, não dava pra reduzir a complexidade do universo desses resíduos — parte de sua humanidade — em um cubo fedorento de plástico, em sacolas de supermercado ou nesses quartinhos, úmidos e cheios de mofo, debaixo de escadas.
Por isso e por outras coisas, reciclava. Assim, sua relação com as sobras (pelo menos com as que irremediavelmente parariam no lixo), não se basearia estritamente nessa lógica reducionista do “elimine”. Separando-as, conseguia ver como se construía diariamente. De que medicamentos, embalagens de compras, de alimentos, de correspondências era feita. E como se tornava cada vez menos o que, nas sessões de psicanálise, dizia querer ser.
E notou que, analisando o caráter de algumas dessas sobras, poderia ter uma dimensão menos obscura de como se sentia. De como se reduzia.
O ralo, por exemplo. Durante meses, não via tantos fios de cabelo ali.
— Normal — diriam muitos. Você tem um cabeleira de dar inveja. E é mesmo necessário que alguns fios caiam, para que outros possam nascer.
Mas ela sabia que não era a diminuição das embalagens de Puran T4 em seu lixo que justificaria tantos fios se espalhando pela casa. No chão, entre roupas, no teclado do computador... Elas continuavam sendo consumidas e eliminadas na quantidade prescrita.
Não poderia ser por isso — refletia.
Aí percebeu.
Claramente.
Que eram outras sobras — ainda não eliminadas, muito menos recicladas — que fazia a produção de outras tantas, como seus fios perdidos, aumentar descontroladamente.
E se indignou.
Porque, ao contrário de outras, não poderiam ser, por meio de um generoso gesto, encaixotadas e doadas para alguma instituição de caridade.
Teria que mantê-las consigo, como essas sacolas de plástico nojentas que levam milhares de anos para se desintegrarem.
A diferença é que essas últimas, ao menos, e mesmo que tardiamente, custavam, mas tinha uma previsão mais ou menos delimitada para desaparecerem. E quanto às primeiras?
Um temor percorreu, gelidamente, sua nuca: o de ficar careca antes que isso acontecesse.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Celebrar

        Van Gogh, pintor holandês
       
         Parece haver pouquíssimas dúvidas, quando o assunto é celebrar. Pensa-se no outro, com quem dividir o brilho da novidade, com quem compartilhar a satisfação da notícia que, de tão gorda, não pode caber senão em nós e no outro, simultaneamente.
Já se viu guardando uma felicidade só pra si? Ato egoísta, diriam muitos. Mas e se não houvesse com quem partilhar? E se a celebração — longe de significar altas taxas de álcool no sangue, batidinhas nas costas seguidas de um sem-fim de expressões-chave que, de tão repetidas, coitadas, não extraem da gente senão um frágil e, também, ensaiado agradecimento —, por um instante, fosse compreendida menos como uma oportunidade de ser reverenciado e mais como a chance de doar? De doar-se?
É que, ontem, esforçando-me por vencer o que para mim nunca foi algo costumeiro, tentei celebrar uma boa-nova. Repassei rapidamente os personagens (antecipando, mentalmente, o que resultaria como resposta ao convite) e escolhi o primeiro deles: uma amiga. Das antigas.
E foi tentando, timidamente, sustentar o discurso do tim-tim que me vi deslocada, bruscamente, para uma dimensão na qual não contava, definitivamente, estar naquele momento: a dos que retiram a vela dos ombros e a colocam diante dos olhos.
Foi assim que percebi. Foi assim que me percebi. Vi que a celebração dessa minha alegriazinha tinha que acontecer de um jeito diferente. E que o lugar dos que comemoram bem poderia ser o lugar dos que estendem o coração e se dispõem a um nada que, de tão besta, bem que pode resultar no sossego feliz de um corpo prestes a passar por uma intervenção cirúrgica.
Não satisfeita com essa constatação, pensei: abro uma cervejinha, fico feliz e continuo buscando um meio de celebrar... Eis que, aproveitando pra resolver um outro nada com uma vizinha, vejo-me diante de uma mulher visivelmente cansada, humilhada e ferida (moral e fisicamente). Que, em poucos segundos, resumiu sua dor (gigantesca, certamente) em duas ou três lágrimas.
Estendendo dois braços vacilantes em sua direção, vi que o melhor era optar pelo suco que tinha pronto na geladeira, por um guardanapo e pelo meu silêncio. Foi o que fiz.
E celebrei.
Celebrei uma alegria distinta. Muito mais reservada do que aquela que residia em meus pensamentos antes de eu ligar pra minha amiga, antes que tocasse a campainha da casa da vizinha ao lado. Uma alegria sem paetês que me mostrou que deslocar meu olhar para fora de mim mesma poderia significar uma maneira outra de celebrar a dádiva recebida.



sexta-feira, 6 de julho de 2012

Oferendas

Pablo Picasso, pintor espanhol

Queria que fosse eu quem sentisse essa dor, minha filha. Mas não posso! Por Deus, não posso! E é horrível vê-la sofrer assim, sem que nada, ou quase nada possa fazer pra remediá-la, diminuí-la. Mas te ofereço... Deixa ver o que posso oferecer...

Quase sempre que pensamos em ofertas, presentes, mimos, pensamos em coisas. Objetos. Com tamanho, volume, peso e, claro, preço!

Quanto maior a caixa, maior o apreço? Quanto mais bonita a embalagem maior a consideração?

Damos voltas em torno do que parece não ter resposta: O que posso lhe dar? O que será que ele(a) ainda não tem? Algo assim inesquecível, impactante... Único. Sabe?

Não, não sei não.

Na verdade suspeito muito, sabe?

É que o gato de gesso, outrora fofo demais, especial e único, sem nenhuma sombra de dúvida, exigia cuidados vigilantes pra que a patinha esquerda ficasse na posição certa, senão... Pumba! Já era! E foi. Pata quebrada, fucinho arrombado, gato no lixo.

Coisas até podem ser únicas, mas perecem.

Mas o que dizer do amigo que surge diante da porta justo na hora em que o outro a fecha definitivamente na sua cara, pra nunca mais voltar? Quanto vale a mão estendida dizendo “Você vai voltar lá sim, senhora!”?

Que dizer do gesto (que valor lhe dar?) da amiga que fica online precisamente no segundo do rombo aberto no peito por duas (três?) páginas precariamente redatadas, cujas linhas argumentam zilhões de coisas que só serão caladas pela força implacável do tempo?

Como valorar o telefonema totalmente fora de hora a partir do qual a voz materna interroga como um oráculo: o que tá acontecendo? Sei que algo está acontecendo...

Que laço de fita escolher pra luzir a palavra ou mesmo o silêncio que curam ou apaziguam a chaga de outros tantos silêncios e palavras doentes? Que se regozijam do pus que brota da alma cansada de embates inúteis que só terminam por nos reduzir à condição vazia de seres que não são capazes de se dar. De amar.

Onde guardar, senão nas infinitas dobras epidérmicas do nosso corpo, da nossa memória, o calor reconfortante da atitude do outro que, durante a noite inteirinha, pobrecito, insiste em manter nossas costas cobertas, quentinhas?

Como reproduzir a sensação diante do vaso de lírio da avó falecida que, após quinze anos de silêncio, resolve brotar? Quinze anos durante os quais foi, a despeito da preguicinha em florir, diariamente cuidado, lembrado, inclusive pelo bisneto que, ao ver finalmente brancas flores naquele vaso sem gracinha, inquire: a bisa está conosco de novo, né?

Quanto vale o calor da prece do amigo distante que ora, fervorosamente, a ponto de encher o santo saco divino, pedindo pelo amigo que sofre de uma dor criada senão por essa mania insana que temos de valorizar apenas o que está previsto no pacote CVC pra se ter uma vida feliz?

Me pauso e penso mesmo no valor da presença insubstituível desse amigo, amiga... Dessa mãe ou desse outro (quem quer que seja) que simplesmente nos quer. Bem.

E não há oferendas pré-existentes que destituam a implacável força do gesto, palavra, presença, do ato gratuito, espontâneo...  que inundam de afeto o corpo sedento do ser que abre olhos, boca, sexo, alma e coração pra comunhão diária (e desejada) com a felicidade. Gota a gota o en chorros desbordantes.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Hoje, marco A

Mana Neyestani, cartunista iraniano

Se pouco tempo disponível há, pra quê raios tamanha indecisão? Qual o sentido de esticar céus azuis? Dobrar raios de sol? Xerocar gozos inesperados?

Ora bolas! Mas que mal há em protelar a felicidade? Se, como reiteradas vezes, dito já foi, ela finda, cessa, mingua...desaparece?

Que mal há em brincar com a morte daquilo que nos quita el juicio, que nos deja el corazón sobresaltado, el sexo húmedo, cuyos latidos, absurdamente insoportables, nos hacen despertar por la mañana con la mano en el sexo?

Sim! Brinco com a dor porque quando sua vez chega pra valer, mal nos resta fôlego para pedir altas, socorro, arrego, abrigo, guarida. É só soco no estômago. Uma e outra vez. Uma e outra vez.

_ Mas o quê é isso, minha filha? Não te ensinei a pensar? Hein, hein? Nem parece que viveu coisa dura, espora na ferida aberta, fio exposto em mãos desavisadas!

_ Nem parece filha minha!

Ok! Então me fale de amor. Mas só do lado bom. Conteúdo do tipo que encha o espaço-tempo de um relógio-cuco quebrado. Tem como? Não, né?

“Este mundo não se justifica, que perguntas perguntar?”, diz Leminski em Catatau.

É que trago, todo tempo, o mundo pra muito perto e, muitas vezes, não dou conta de fazer a meia-volta. Por isso, dou, uma e outra volta, mas em torno de mim mesma. Então pra quê mundo, se me imundo em mim e nos avessos e entranhas do meu próprio ego?

Pra quê mundo?

Pra quê o outro? Se me infinito nas dobras e contradições de um eu, diante do qual outros eus, o tempo todo, insistem em me te vos tú nós... enjaular, em conceitozinhos facilmente adaptáveis, ao limitado escopo do abcde das questões de múltipla escolha?

Decidido!Hoje marco A!

Que Deus me ajude a errar com dignidade. E, depois da cura, ter ainda fôlego pueril para errar entre as demais opções.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Desfiando cebolas

             Robert Doisneau, fotógrafo francês

          Outro dia, aqui em casa, fatiando uma muçarela em pedaço que tinha comprado, subitamente, me veio à mente a lembrança de como tinha conseguido ter acesso ao instrumento cortante, cujo nome não tenho a mais mínima ideia, para a realização dessa tarefa que, em minha infância, era causadora de efêmeras desavenças entre pais e filhos. Tudo por causa do desejo de cortar o queijo, o presunto ou similares do mesmíssimo jeito que a máquina de fatiar da padaria — tarefa obviamente impossível — e do que, de fato, era possível fazer com uma faquinha muito meia boca que tínhamos disponível, cujo uso era incentivado pela vontade (quase sempre pra ontem) de fazer um misto quente e comê-lo, também pra ontem.
            Nada a ver com ficar esfregando madeira em pedra pra conseguir fazer fogo, mas o fato é que o tal instrumentozinho ao qual me refiro só se deu a conhecer à minha pessoa numa única casa: a de uma amiga chique que tinha. Tamanha foi minha surpresa ao perceber o quanto poderia economizar (já que frios fatiados e em pedaços têm preços diferentes, como muitos sabem), bem como me sentir menos subserviente às tais máquinas fatiadoras dos supermercados e padarias. Alívio!
            O duro foi encontrar o danado do fatiador manual. Foram muitos os passeiozinhos por lojas e lojas de BH, procurando unzinho que fosse para ter também em minha cozinha. Inútil. A coisa parecia não existir. E, como não poderia deixar de ser, foi num dia em que nem me lembrava mais dele que o encontrei. Pasmem: numa loja de materiais de construção!
            Hoje, aqui em Diamantina, encontro vários deles em apenas uma loja e sorrio com o cansaço dos que se orgulham ao olhar para um objeto aparentemente corriqueiro e se lembram de toda uma história (com personagens, roteiro, espaço, tempo, ação...). Pessoas, objetos, desejo, infância, brigas, sabores, buscas, encontros: vastidão de memórias que vão se desfiando, se sobrepondo, tal como cebola...
            Acho que deve ser essa uma das razões que levam muitos a subir nas tamancas ao verem um objeto quebrado, perdido, roubado, corrompido ou desgastado pelo tempo. Acho isso. Porque, claro, não poderia ser só o tal valor material, que tantos insistem em levar em consideração. Isso é pouco. É raso. Acho mesmo.
            “— Ligue não, minha filha, você compra outro som melhor do que aquele; você vai ver!”. É, mãe, o problema é que aquele som, “aquele aparelho de som”, tinha a marca do esforço (em doze vezes sem juros) do trabalho de uma adolescente — euzinha aqui — que mal se iniciara no mundo “shoppiniano” do trabalho celetista e de uma mãe — você, aliás — (sem emprego fixo, pensões ou aposentadorias) que venderia a alma pra realizar o sonho de um filho.
            Talvez, pelas camadas e camadas de memórias que vão se acumulando nas coisas (instrumentozinhos de fatiar frios, aparelhos de som surrupiados e outros), fazendo com que elas pareçam perder a aura de coisas — para os que não lidam com elas como se fossem produtos descartáveis — e comecem a ganhar outras conotações. Se não de seres vivos, ao menos de sistemas orgânicos que vão sendo ressignificados, modificados, desconstruídos, na relação deles conosco, com outros objetos, outros seres, outras pessoas, outras coisas. Contextos outros.
            Já experimentou a sensação do homem ao ver sua amada atual vestida com a blusa presenteada por um ex de mil novecentos e cafunga? As conexões neuronais seguramente se aceleram. E nós, no meio disso tudo... e elas também no meio...
            Talvez seja essa a motivação do assaltado que, ao implorar ao bandido: “— Por favor, não leve meus documentos, não os leve, por misericórdia!”, não para de pensar no chaveirinho de pelúcia que ganhou de um irmão recentemente falecido.
            Talvez seja essa a razão que nos empurra a não nos desfazermos daquela blusa démodé que já debutou, há anos, em nosso armário. E que, mesmo assim, vez ou outra, se vê altiva em contato com nossa pele. Orgia mnemônica.
            Mas, pensando nisso, também penso. Penso muito... Não seria a inversa dessa lógica que nos faz, algumas vezes, tomar certos humanos como coisas? Os afanadores de aparelhos de som, por exemplo?