terça-feira, 7 de outubro de 2014

Desfile

Foto de Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro

Não pôde respirar profundamente, de delírio ou terror, porque tudo acontecia à sua volta rápido demais para ter tempo de identificar, compreender e decidir-se. Ou tomar partido, politicamente falando.

Era capaz, no entanto, em meio ao turbilhão de infinitos mundos de sonhos, narrativas de pavor e amor ao seu redor, identificar um zilhão de detalhes que impedia que sua existência despencasse nas garras do desamor e da inexperiência (ou seria medo?) dos seres à comunhão que não reparte apenas pães, mas consideração e respeito.

Observou entre o trânsito caótico do centro da cidade a moça negra que ia de salto bicolor (preto e branco) de pelica. Usava short estampado florido, blusa de alcinha verde com as alças do sutiã preto à mostra.

Fui incapaz de reagir pautada numa lista de regras ou padrões estéticos. Via ali uma rainha que se equilibrava cuidadosamente em seus sapatos novos entre pedras de um calçamento que outrora foi passarela para o açoite diário de seus antepassados. A mesma cautela que talvez levava o vagalume a brilhar modesto em meio às dezenas de luzezinhas que enfeitavam tantas e tantas casas naquele Natal, ainda que entorno de si houvesse a necessária escuridão para fazer imperar seu brilho.


Mas eu e ela (ele, talvez) sabíamos que não era hora. E que ela viria quando tivesse que vir. Sem explicações. Do mesmo modo que, também sem explicações, emudeceria.

sábado, 4 de outubro de 2014

Suspensão

Kandinsky, artista russo

O som externo não poderia ser mais patético. Não combinava com o concerto interno que levava dentro. Nem sequer um pedaço de pneu de caminhão na estrada, arremessado abruptamente contra o parabrisas de seu carro, a assustara.

Susto maior já havia sentido quando, lançando mão dos dedos, fizera uma conta rápida para calcular o tempo que passara sendo tudo menos ela mesmo. Menos por opção que por condicionamento. Um tanto cuja dimensão decidira desinstalar pouco a pouco pela prática determinada de um sem fim de subverzõeszinhas cotidianas. Ações corriqueiras carregadas de um simbolismo que a faziam se reconhecer cada vez menos como um hamster dentro de um par de tubos coloridos que imitavam pateticamente, mas para a felicidade de muitos, um estúpido parque de diversões.

Experimentava corajosa um afastamento paulatino daquilo que em teoria mais deveria amar. E constatava, não menos horrorizada, que a quietude impávida da cicatriz costumava ser, antes, latejante ferida. E sonhava acordada em sentir seu corpo coberto delas para que pudesse escutar somente a pulsação de seu desejo desesperado em ser tudo aquilo que poderia ser por opção própria.

E suspensa numa névoa feita da mais profunda solidão resolveu: sim, preferia flutuar no vazio. Ao menos esse o havia criado ela. Ele e todo o inominável que viria depois.


terça-feira, 26 de agosto de 2014

Umbigo?

Afrodita, escutura de Alberto Acuña, artista colombiano


Escolher a si próprio no sentido oposto ao do egoísmo, mas do cuidado de si e do amor próprio é um dos gestos mais solidários e difíceis que conheço.

Para quem acha que a solidariedade brota espontaneamente como capim em terreno baldio engana-se. Porque o verdadeiro gesto solidário nasce de um marcado sentimento de autocompaixão. Afinal, o outro só ganha concretude na medida exata e prévia da existência consciente (e quase sempre dolorosa) do si mesmo.

Impossível acreditar, nesse sentido, em doação efetivamente sincera a algo exterior a mim, se não há convicção, a priori, da importância e da infinita beleza do próprio ser.

Há quem costume reduzir essa fórmula em clichês facilmente convincentes que se alastram na velocidade da luz e que vão arrastando hordas de sujeitos cada vez menos convencidos da responsabilidade por suas próprias trajetórias.

Nunca vi humano algum virar santo por se anular por outro ser. Mas já vi muitos enlouquecerem por contabilizarem estupefatos o saldo negativo da equação eu - outros.

Arco-íris de todo dia

por las calles de Cartagena, foto de Juliana Leal


Nem sempre são poéticas as condições de produção da poesia.  As de percepção sim.

É como se se abrisse um fosso espaço-temporal em torno do qual o fluxo cotidiano das coisas seguisse indiferente ao arco-íris que a poesia, sorrateiramente, planta diante de nós e nos inquirisse: “_ Vais recu(s)ar?”

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Bolsa nunca foi acessório

imagem de espetáculo da Companhia de Pina Bausch


A bolsa está para a mulher (algumas delas ou todas, vacilo) assim como a muleta está para o vovozinho. Necessidade estrutural. Ponto de fuga entre os obstáculos vários que vão nos interceptando e esfarelando a pretensa solidez de nossos propósitos, intenções e quereres. E que vai recortando nossos discursos, vazando nosso caminho em imprevisíveis atalhos existenciais que mal nos dão chance do necessário tempo do respiro que abre uma fenda invisível diante da qual temos a chance de fazer escolhas. Agir.

Minha bolsa, em inúmeras ocasiões, abre para mim uma espécie de portal dentro do qual me escondo, despisto, protelo, adio. Sou.

É com ela que tenho a oportunidade de criar, me (re)criar.

Inútil reduzi-la a batons, espelhos e tolices.

Sem ela sou lançada cruamente, e a contragosto, em circunstâncias e me vejo obrigada a assumir a fictícia posição dos que sabem sempre o que dizer e fazer.

Não!

Bolsa nunca foi acessório.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Poética da solidão


Imagem de um espetáculo da Companhia de Pina Bausch

Fazer comida pra uma pessoa só obriga o sujeito a ter uma infinidade de vasilhinhas de plástico (nem me refiro às famosas tupperwares, bonitinhas com suas respectivas tampinhas coloridas, tal e como as mães da gente sonham que tenhamos) cheiinhas de resto de jantares e almoços do que propriamente o conteúdo daquele modelão de geladeira em que há sempre lindas maçãs brilhantes, vermelhas, é claro, iogurtes light, lógico, e algumas garrafas de cerveja, pra não dizer que a criatura é uma espécie de santo disfarçado de reles mortal.
Sem contar o martírio de comer três ou quatro dias o mesmo prato. Porque, claro, pra quem cresceu em meio à lógica do “quem não repete não gostou”, fazer comida a conta gotas tá mais pra pecado inafiançável do que pra inteligência culinária.
Não consigo. A mão erra sempre pra mais.
De igual maneira não dou conta de comer, sem dor na consciência, todo dia em restaurante. Tá certo que pelas contas, pela trabalheira que se poupa diariamente e uma infinidade de excelentes argumentos comer fora acaba sendo a solução redentora dos que moram sós. Mas, sério, fazer comida em casa pode nos livrar de uma série de hábitos que vão nos embrutecendo, pouco a pouco, sem que, sequer, nos demos conta.
Me explico. Há algum tempo defendo o seguinte argumento: é preciso fazer convites para que nos civilizemos. Convidar pra comer está entre as estratégias. Quem convida, nunca foca só no menu. Arruma a casa todinha (passando, pasmem, até lustra-móveis!!!), joga trastes entulhados há séculos fora (afinal, mineiro que se preza mostra sempre a casa inteira, incluindo o banheiro), escolhe a melhor roupa de cama, de banho e chega, em casos mais extremos, a substituir os garfos tortos, que mais parecem tridentes, por um jogo novo da Tramontina (com cabo de plástico, pela pressa e grana) que disfarce, nem que seja um pouco, o primata que existe ao lado de quem tem como cônjuge a solidão.

Não quero dizer, com tudo isso, que viver só seja uma maldição. Ao contrário. Lamber cotidianamente a fuça da solidão talvez seja o modo mais bonito para a acolhida sincera do outro. Afinal, só quem sabe encarar as próprias sombras como projeção necessária de si mesmo pode, um dia, exigir do outro nada além do que ele apenas é.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Sobre reencontros



Às vezes vou anotando, quase sempre no facebook mesmo, para não perdê-los, situações que me inquietam ou me excitam, estímulos (imagens várias do meu cotidiano), pedaços de textos que leio e amo, que me provocam ou me arrebatam, fragmentos engraçados de conversas que vou ouvindo pelas minhas andanças, e que vou pescando por aí para depois costurá-los e tentar transformá-los em exercício poético.

Tive ganas de escrever sobre brincos perdidos. Espécie de maldição da qual sofro há anos.

O caso é que nunca perco os dois de uma vez. Um deles sempre fica pra sublinhar a ausência do outro que, quase nunca, aparece. Mas, como a esperança é um trem danado, acabo guardando os órfãos numa espécie de cemitério. À espera do quê, não sei bem. O fato é que, começou com um brinco solteiro que se transformou em presilha pra unir um pingente sem uso a um cordão de prata. Ficou lindo. Quem o visse jamais imaginaria sua função anterior. Jamais diria que fora um brinco.

Outro dia, por descuido meu, uma faísca de um dos meus incensos diários voou ligeira e aterrissou em um dos braços do meu sofá, tatuando o verde musgo de seu tecido de um circulozinho negro impossível de remediar. O que fazer? Abri meu cemitério de bijoux e vi a aranha roxa que jazia solitária, como tantos outros, à espera de um destino que a redimisse da solidão e da improdutividade.

Mas o quê fazer diante do encontro, não programado, com um brinco (apenas um deles) cujo desaparecimento mal havia sido percebido? Disposto cuidadosamente no batente de uma das janelas da sala de um lugar no qual não se ia há quase meio ano? Não fosse por ser pássaro emoldurado em resistente material, diria que estava ali louco pra voar e desaparecer dos olhos de quem por ali passasse. De mim, principalmente. Afinal, por que razão oculta se reencontrar logo comigo?

Suspirei profundamente na tentativa, vã, de dar conta da avalanche de lembranças que começaram a pulular freneticamente em minha cabeça: a noite de amor compulsoriamente silencioso. Intenso. Quase clandestino. O quando preciso durante o qual devo ter abandonado, involuntariamente, o mimo querido.

Que fazer com um brinco perdido que se recupera sem antes tê-lo buscado? Vira apenas uma despretensiosa crônica ou indício de que certas coisas que se distanciam de nós podem, quizá, assim sem querer, aparecer novamente, sem pretensões maiores do que a de nos fazer crer na chance, ainda que remota, do retorno do que um dia se quis muito. Ou, no mínimo, se aproveitou de montão.


sexta-feira, 21 de março de 2014

Chance


Denis Núñez Rodríguez, pintor cubano

O dar também faz parte do processo libertador de aprender a ser. Porque quem sempre teve pouco, acaba acreditando que o universo inteiro é apenas a sua aldeia. E não tem nada de mal nisso, já disse Pessoa, naqueles versos mais que conhecidos.

Mas a aura dessa metáfora perde sentido quando a vida prática vai pedindo logo seu Lattes. Assim, na lata.

_ E agora, Josés e Marias?

Defendo aldeias e defendo universos. E acredito fielmente que estes estejam naquelas, mas também em muitos outros lugares. Inclusive nos que ainda nem foram descobertos e muito menos nomeados. E que esses lugares, em algum momento, por alguém ou alguéns precisam ser revelados e apresentados para que nossas aldeias interiores se expandam para além de si próprias.

Eu não conheço isso, mas sou capaz de estabelecer com o desconhecido uma conversa íntima desde tempos imemoriáveis. Seriam os ecos do que fui, do que sou ou de quem eu, absurdamente, posso me transformar?

Mas eu nem tenho medo de tudo isso porque temor maior sinto em não submeter corpo, alma e pele às experiências que poderão, um dia, talvez, assim de surpresa, me fazer reconhecer em mim mesma algo que nunca supus perceber. Muito menos admitir.


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Capas de chuva

Guilherme Kneipp, fotógrafo brasileiro


Infinitos são os momentos para um contato profundo consigo mesmo, ainda que raros sejamos os que estejamos, ao menos vez ou outra, alertas para esse contato. Revelador, quase sempre.

Entre os que pertencem ao grupo dos distraídos, embora se creiam, antes, prevenidos, estão os que compram capas de chuva.

Sei que água molha, pedra dura, essas coisas. Mas e quanto aos assaltos de poesia, aos quais o cotidiano, por exemplo, em passeios ultra planejados, nos arremetem?

Poesia também precisa de hora marcada?

Talvez não, mas vendedores ambulantes são mestres em obnubilar ainda mais nossa percepção da proximidade do belo. Desvio de rota que até pode garantir alívio, embora subtraia sensações várias e imprevisíveis decorrentes da alma que apenas vai.

No caminho, como em um programa de auditórios, obstáculos mil: fotógrafos que vendem você em uma paisagem, cuja beleza você nem teve chance de desfrutar; turistas afoitos em abduzir o visto em centenas de disparos fotográficos e, finalmente, o solitário vendedor de capas de chuva. Assim, bem na única entrada de um longo corredor entre cascatas. Entre as Cataratas do Iguaçu.

Pensei no intenso calor que fazia e na água que refrescaria meu corpo. E pensei também no mesmo sol que secaria ligeiro minhas roupas.

7 reais!!!! Capas de chuva! Duas por 10. Tá acabando!

Parei de pensar antes que fosse convencida pelo engano da proteção que possivelmente teria vestindo uma capa de plástico.

Foquei nos rostos que vinham em minha direção. Rostos, pernas e braços molhados.  Sorrisos nacionais e estrangeiros que transbordavam vida.

Fui. Desprotegida e atenta ao meu gozo e ao alheio. Queria multiplicá-lo quantos fossem os sorrisos, olhos e corpos que passassem por mim. E eu por eles. Afinal, um corredor humano entre torrentes de água por todos os lados quase nos tornava uma só coisa: pequeninos seres que reverenciavam estupefatos a magnitude da natureza que bela era simplesmente por estar ali.

Mas fui precipitadamente arrancada desse cenário por uma imagem que vinha lenta em minha direção: uma mulher vestida de negro que sorria feliz com as gotas das cascatas que não preservavam seu rosto árabe.

Via o negro de sua túnica cedendo pouco a pouco à implacável umidade do entorno e vigiava, de longe, o homem que seguia vendendo proteção.

Teria ele abordado essa mulher? Teria se sentido, ao menos como eu, agora, estúpido por defender certas proteções quando o cálido da vida surge justamente quando estamos nus?

Olhando agora de longe para ela, e bem de perto para minhas mãos, braços e pernas expostos, me regozijava altiva por ter me esquivado dos argumentos do vendedor e por ter tido a sorte de ser brasileira.