sábado, 4 de outubro de 2014

Suspensão

Kandinsky, artista russo

O som externo não poderia ser mais patético. Não combinava com o concerto interno que levava dentro. Nem sequer um pedaço de pneu de caminhão na estrada, arremessado abruptamente contra o parabrisas de seu carro, a assustara.

Susto maior já havia sentido quando, lançando mão dos dedos, fizera uma conta rápida para calcular o tempo que passara sendo tudo menos ela mesmo. Menos por opção que por condicionamento. Um tanto cuja dimensão decidira desinstalar pouco a pouco pela prática determinada de um sem fim de subverzõeszinhas cotidianas. Ações corriqueiras carregadas de um simbolismo que a faziam se reconhecer cada vez menos como um hamster dentro de um par de tubos coloridos que imitavam pateticamente, mas para a felicidade de muitos, um estúpido parque de diversões.

Experimentava corajosa um afastamento paulatino daquilo que em teoria mais deveria amar. E constatava, não menos horrorizada, que a quietude impávida da cicatriz costumava ser, antes, latejante ferida. E sonhava acordada em sentir seu corpo coberto delas para que pudesse escutar somente a pulsação de seu desejo desesperado em ser tudo aquilo que poderia ser por opção própria.

E suspensa numa névoa feita da mais profunda solidão resolveu: sim, preferia flutuar no vazio. Ao menos esse o havia criado ela. Ele e todo o inominável que viria depois.


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