terça-feira, 7 de outubro de 2014

Desfile

Foto de Sebastião Salgado, fotógrafo brasileiro

Não pôde respirar profundamente, de delírio ou terror, porque tudo acontecia à sua volta rápido demais para ter tempo de identificar, compreender e decidir-se. Ou tomar partido, politicamente falando.

Era capaz, no entanto, em meio ao turbilhão de infinitos mundos de sonhos, narrativas de pavor e amor ao seu redor, identificar um zilhão de detalhes que impedia que sua existência despencasse nas garras do desamor e da inexperiência (ou seria medo?) dos seres à comunhão que não reparte apenas pães, mas consideração e respeito.

Observou entre o trânsito caótico do centro da cidade a moça negra que ia de salto bicolor (preto e branco) de pelica. Usava short estampado florido, blusa de alcinha verde com as alças do sutiã preto à mostra.

Fui incapaz de reagir pautada numa lista de regras ou padrões estéticos. Via ali uma rainha que se equilibrava cuidadosamente em seus sapatos novos entre pedras de um calçamento que outrora foi passarela para o açoite diário de seus antepassados. A mesma cautela que talvez levava o vagalume a brilhar modesto em meio às dezenas de luzezinhas que enfeitavam tantas e tantas casas naquele Natal, ainda que entorno de si houvesse a necessária escuridão para fazer imperar seu brilho.


Mas eu e ela (ele, talvez) sabíamos que não era hora. E que ela viria quando tivesse que vir. Sem explicações. Do mesmo modo que, também sem explicações, emudeceria.

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