domingo, 11 de setembro de 2011

Pus



Quando era criança, não entendia como minha mãe era capaz de, vendo uma fruta apodrecer, dizer: “— Dá pra comer!!!”. Chegava a sentir náuseas, mesmo ela me assegurando que, eliminando a parte estragada, poderíamos comê-la sem problemas.
A parte pelo todo. Sensação metonímica. Acho que era isso o que eu sentia. Via a parte feia da coisa e, automaticamente, considerava o todo digno do meu desprezo, do meu não-apreço.
Não dava. Eu não comia.
            Hoje, na fase adulta, me deparo com tomates a cinco reais o quilo. E me indigno! Como assim, cinco reais??? E me vejo, naturalmente, ressignificando o valor das coisas.
No último final de semana, por exemplo, voltando de uma cachoeira, vi um galho dourado no chão que interrompeu, altivo, minha caminhada. Não! Não era um galho seco. Aquilo era o objeto de decoração que precisava prum cantinho ocioso da minha casa. Ao vê-lo, me lembrei do que sobrara de uma orquídea linda que ganhei: apenas o vaso, com suas raízes secas causadas pela morte compulsória, ocasionada pelos mais de trinta dias que fiquei fora de casa.
            Junto com outra grande amiga, aproveitei o contexto, me agachei e recolhi, sorridente, uma série de pedrinhas brancas que dariam o toque final da obra de arte que acabara de, mentalmente, montar: o que sobrara de um presente de uma amiga querida, uma recordação de um passeio feliz numa cachoeira bonita de Diamantina e um punhado de pedras (dezenas delas), com as quais nos deparamos no meio do caminho.
            O resultado dessa união de coisas “mortas”, dignas, talvez, em outras circunstâncias, de terminarem no lixo, foi um enfeite bonito que construí pra minha casa.
            Não pretendo, com isso, dizer que passei a entender a lógica da minha mãe sobre os alimentos, que é também — venho constatando isso mais e mais, a cada dia — a mesma daqueles cujas coisas não caem do céu: retirando o podre, claro!, pode-se... Enfim...
Continuo achando isso muito estranho ainda. Continuo tendo dificuldades pra controlar meus instintos assassinos e não oferecer o lixo como único fim para aquilo que, em um dado momento, se mostra, pra mim, repugnante. Mesmo que somente uma pequena parte sua.
            E, falando sobre isso, penso na tolerância... Penso muito nela. Nessa capacidade que alguns têm de esperar. Esperar pra ver se a ferida se alastra realmente. Ou se recebe a cura de presente. Esperar pra ver se vale a pena confiar no outro. Esperar pra ver as coisas melhorarem. Afinal, a gente não encontra tudo pronto e é preciso, muito, dizem, ter paciência. Ter, enfim, a perspicácia daqueles que olham pra chaga purulenta e veem possibilidade de vida. Vindoura, presente, passada... De olhar pra algo morto (morto???) e lhe dar utilidade, lhe dar chance. Tempo. Significado.
            Tempo pra ver florir, por exemplo, um pedaço mixuruca de uma flor que minha mãe disse se chamar beijo, quando esteve de visita por estas bandas das Minas Gerais. E ela — a mesma que ainda insiste em que eu não elimine uma verdura, legume ou fruta, por identificar manchinhas escuras ou partes amolecidas pelo tempo —, olhando pro tal raminho, decretou, sem dó nem piedade: “— Beijo não pega assim, minha filha”. “— Vai morrer!”
            Olhando, quinze dias depois, pra plantinha (agora um pouco menos mixuruca, mas viva)... olhando pro enfeite que montei e vigiando pra que meus alimentos não se decomponham antes que eu os coma, concluo, sem muito vacilar: preciso ler poesia todos os dias... Poesia pra perceber ou construir vida em torno de mim. O tempo todo. Todo o tempo. Pra entender que pus, por exemplo, não é tão nojento assim. É simplesmente o que resulta de uma briguinha invisível pela manutenção da vida.
            

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