sexta-feira, 16 de maio de 2014

Poética da solidão


Imagem de um espetáculo da Companhia de Pina Bausch

Fazer comida pra uma pessoa só obriga o sujeito a ter uma infinidade de vasilhinhas de plástico (nem me refiro às famosas tupperwares, bonitinhas com suas respectivas tampinhas coloridas, tal e como as mães da gente sonham que tenhamos) cheiinhas de resto de jantares e almoços do que propriamente o conteúdo daquele modelão de geladeira em que há sempre lindas maçãs brilhantes, vermelhas, é claro, iogurtes light, lógico, e algumas garrafas de cerveja, pra não dizer que a criatura é uma espécie de santo disfarçado de reles mortal.
Sem contar o martírio de comer três ou quatro dias o mesmo prato. Porque, claro, pra quem cresceu em meio à lógica do “quem não repete não gostou”, fazer comida a conta gotas tá mais pra pecado inafiançável do que pra inteligência culinária.
Não consigo. A mão erra sempre pra mais.
De igual maneira não dou conta de comer, sem dor na consciência, todo dia em restaurante. Tá certo que pelas contas, pela trabalheira que se poupa diariamente e uma infinidade de excelentes argumentos comer fora acaba sendo a solução redentora dos que moram sós. Mas, sério, fazer comida em casa pode nos livrar de uma série de hábitos que vão nos embrutecendo, pouco a pouco, sem que, sequer, nos demos conta.
Me explico. Há algum tempo defendo o seguinte argumento: é preciso fazer convites para que nos civilizemos. Convidar pra comer está entre as estratégias. Quem convida, nunca foca só no menu. Arruma a casa todinha (passando, pasmem, até lustra-móveis!!!), joga trastes entulhados há séculos fora (afinal, mineiro que se preza mostra sempre a casa inteira, incluindo o banheiro), escolhe a melhor roupa de cama, de banho e chega, em casos mais extremos, a substituir os garfos tortos, que mais parecem tridentes, por um jogo novo da Tramontina (com cabo de plástico, pela pressa e grana) que disfarce, nem que seja um pouco, o primata que existe ao lado de quem tem como cônjuge a solidão.

Não quero dizer, com tudo isso, que viver só seja uma maldição. Ao contrário. Lamber cotidianamente a fuça da solidão talvez seja o modo mais bonito para a acolhida sincera do outro. Afinal, só quem sabe encarar as próprias sombras como projeção necessária de si mesmo pode, um dia, exigir do outro nada além do que ele apenas é.

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