quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Talento humano

Antonio Berni, pintor argentino

Quase ninguém costuma questionar a validade das manifestações humanas desencadeadas pelas catástrofes, a ponto de nos flagelarem e de nos autoflagelarmos, se não nos sensibilizamos por essa ou aquela tragédia. Por essa ou aquela dor.
— Você não ficou sabendo???
Nunca deixei de ver, amiúde, multidões de interessados pelo drama alheio. Tropas que sustentam profissionalmente uma atmosfera chorosa que se atualiza sempre e quando um de nós se dedica a contá-la, revivê-la, repeti-la. Incansavelmente.
— Foi horrível! Nem te conto! Um horror!
Desenhamos caretas de repúdio, nojo, asco, pena, piedade, compaixão... Lista de sintomas que não deixam dúvidas de que temos sentimentos, de que nos preocupamos, nos implicamos com o outro. Nos implicamos? Ou implicamos?
— Noooooooooooooossa Senhora! Como isso aconteceu?
— Você não ficou sabendo? Tão moço, ainda. E deixou três filhos pequenos... Um dó!
Encenamos os mais variados textos e os repetimos, quantas e quantas vezes seja necessário, pra contar e recontar o que nos chocou, sangrou, doeu... aquilo que nos exigiu renúncias ou a aceitação de perdas, recuperáveis ou não.
            Passamos boa parte de nossas existências ocupando-nos em gotejar o fel desses pequenos ou grandes dramas. E, sem perceber, moldamos nossas feições, cada linha de expressão de nosso rosto, ao compasso desse disco arranhado.
Quanto talento pro sofrimento!!! E quantos súditos aumentam a legião dos que perpetuam as tragédias em lembranças que não descansam.
Sabemos, com destreza, a melodia que devemos imprimir às nossas vozes e dominamos bem o que fazer com nossos olhares...
Mas tanto talento humano pra revolver o purulento não parece ajudar na hora em que nos defrontamos com sorrisos, abraços e gestos de carinho. Os naturais ou os propositalmente encenados.
É que, em BH, há um senhor que faz caminhada na Avenida Bernardo Vasconcelos... Que leva, durante todo o seu percurso, um sorriso enorme estampado na cara. O mesmo sorriso grande dessas máscaras de papel que encontramos pra comprar pras festas à fantasia ou pro carnaval. O dele, no entanto, ainda que aparentemente estático, já que não descansava um só instante de sorrir, tinha força suficiente pra deixar o sorriso, o olhar, o passo de que vinha em direção contrária a dele, incluindo a mim mesma, sofrerem momentos de intenso desconforto.
Que resposta se dá ao sorriso sincero de um desconhecido? Sorrir de volta? Abaixar a cabeça, consultar o celular, o relógio? Desviar o olhar, amarrar o tênis, passar as mãos pela cabeça e piscar profundamente, num tempo exato para abrir os olhos e não ter mais a demanda de sorrir de volta?
Vacilo.
Se há tanta aptidão, inclusive inata, para se indignar com a dor dos outros  — que levam curiosos a se amontoarem ao redor de cadáveres suicidas, atropelados, enfermos (vulneráveis em sua estaticidade de sangue e pele) —, por que não teríamos capacidade para lidar com um “inofensivo” sorriso???
Só sei que sua alegria me incomoda... mais, até, talvez, do que se eu o visse atropelado na tal avenida. Porque, diante da segunda, automaticamente, saberia como me comportar. Mas, diante de sua alegria (senil? pueril? de louco?), continuo me valendo de mil e um subterfúgios pra não encará-lo.
Mas tenho feito progressos. E me alegro com isso.

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