terça-feira, 3 de julho de 2012

Desfiando cebolas

             Robert Doisneau, fotógrafo francês

          Outro dia, aqui em casa, fatiando uma muçarela em pedaço que tinha comprado, subitamente, me veio à mente a lembrança de como tinha conseguido ter acesso ao instrumento cortante, cujo nome não tenho a mais mínima ideia, para a realização dessa tarefa que, em minha infância, era causadora de efêmeras desavenças entre pais e filhos. Tudo por causa do desejo de cortar o queijo, o presunto ou similares do mesmíssimo jeito que a máquina de fatiar da padaria — tarefa obviamente impossível — e do que, de fato, era possível fazer com uma faquinha muito meia boca que tínhamos disponível, cujo uso era incentivado pela vontade (quase sempre pra ontem) de fazer um misto quente e comê-lo, também pra ontem.
            Nada a ver com ficar esfregando madeira em pedra pra conseguir fazer fogo, mas o fato é que o tal instrumentozinho ao qual me refiro só se deu a conhecer à minha pessoa numa única casa: a de uma amiga chique que tinha. Tamanha foi minha surpresa ao perceber o quanto poderia economizar (já que frios fatiados e em pedaços têm preços diferentes, como muitos sabem), bem como me sentir menos subserviente às tais máquinas fatiadoras dos supermercados e padarias. Alívio!
            O duro foi encontrar o danado do fatiador manual. Foram muitos os passeiozinhos por lojas e lojas de BH, procurando unzinho que fosse para ter também em minha cozinha. Inútil. A coisa parecia não existir. E, como não poderia deixar de ser, foi num dia em que nem me lembrava mais dele que o encontrei. Pasmem: numa loja de materiais de construção!
            Hoje, aqui em Diamantina, encontro vários deles em apenas uma loja e sorrio com o cansaço dos que se orgulham ao olhar para um objeto aparentemente corriqueiro e se lembram de toda uma história (com personagens, roteiro, espaço, tempo, ação...). Pessoas, objetos, desejo, infância, brigas, sabores, buscas, encontros: vastidão de memórias que vão se desfiando, se sobrepondo, tal como cebola...
            Acho que deve ser essa uma das razões que levam muitos a subir nas tamancas ao verem um objeto quebrado, perdido, roubado, corrompido ou desgastado pelo tempo. Acho isso. Porque, claro, não poderia ser só o tal valor material, que tantos insistem em levar em consideração. Isso é pouco. É raso. Acho mesmo.
            “— Ligue não, minha filha, você compra outro som melhor do que aquele; você vai ver!”. É, mãe, o problema é que aquele som, “aquele aparelho de som”, tinha a marca do esforço (em doze vezes sem juros) do trabalho de uma adolescente — euzinha aqui — que mal se iniciara no mundo “shoppiniano” do trabalho celetista e de uma mãe — você, aliás — (sem emprego fixo, pensões ou aposentadorias) que venderia a alma pra realizar o sonho de um filho.
            Talvez, pelas camadas e camadas de memórias que vão se acumulando nas coisas (instrumentozinhos de fatiar frios, aparelhos de som surrupiados e outros), fazendo com que elas pareçam perder a aura de coisas — para os que não lidam com elas como se fossem produtos descartáveis — e comecem a ganhar outras conotações. Se não de seres vivos, ao menos de sistemas orgânicos que vão sendo ressignificados, modificados, desconstruídos, na relação deles conosco, com outros objetos, outros seres, outras pessoas, outras coisas. Contextos outros.
            Já experimentou a sensação do homem ao ver sua amada atual vestida com a blusa presenteada por um ex de mil novecentos e cafunga? As conexões neuronais seguramente se aceleram. E nós, no meio disso tudo... e elas também no meio...
            Talvez seja essa a motivação do assaltado que, ao implorar ao bandido: “— Por favor, não leve meus documentos, não os leve, por misericórdia!”, não para de pensar no chaveirinho de pelúcia que ganhou de um irmão recentemente falecido.
            Talvez seja essa a razão que nos empurra a não nos desfazermos daquela blusa démodé que já debutou, há anos, em nosso armário. E que, mesmo assim, vez ou outra, se vê altiva em contato com nossa pele. Orgia mnemônica.
            Mas, pensando nisso, também penso. Penso muito... Não seria a inversa dessa lógica que nos faz, algumas vezes, tomar certos humanos como coisas? Os afanadores de aparelhos de som, por exemplo?

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