quarta-feira, 20 de junho de 2012

Instinto

Pierre Matter, artista francês

Foi numa manhã de um dia útil que estive diante dos olhos mais tristes que até então tinha conhecido.

Doeu de olhar, apesar de não parecerem se importar muito com sua própria dor. Patrimoniada que estava na superfície de sua alma. Dificilmente intransferível, no entanto.

Perguntei ao homem que os acompanhavam:

_ O que (ele?) tem?
_ Ela. É ela... _ me corrigiu.
_ Depressão.
_ Como assim “depressão”? _ me surpreendi.

Uma sucessão de perguntas e respostas foi se aglutinando em torno daquilo que para mim não podia ser real. Por isso insisti. Por isso dei um pause no meu percurso para dar uma chance pra mim. Não podia explicar direito, mas conseguia me perceber melhor como ser humano ouvindo o homem contar a rotina daquela criaturinha.

Tristeza. Choros.  Diários... Ininterruptos, contava. Rotina insuportável para a família que, à despeito das várias orientações médicas de que o que ela de fato precisava era companhia de carne e osso, decidira providenciar um bichinho de pelúcia que ela, em sua carência presidiária, adotara como seu filhinho. Um dó de ver, me relatava.

_ Mas por quê isso, santo Deus? Por quê? _ perguntava com uma indignação que não fazia questão alguma de controlar.

Não, não a deixavam. Precisavam, antes, encontrar um parceiro do seu nível. Do contrário nada poderia ser feito e ela continuaria na companhia cuidadosa do homem que me relatava o caso e que a levava para passear, vez ou outra, pelas ruas do bairro. Um jeito besta de despistar sua infelicidade.

Depois de um tempo o silêncio se instaurou de vez entre nós três. Única saída digna para aquela história...talvez a de tantos outros seres... Daquela rua? Da cidade? Minha? Sua?

Retomei meu caminho e me despedi. Mas antes que me afastasse demais, olhei pra trás pra ver se ela ao menos latiria. Que fosse de tristeza. Paciência!!! _ pensei. Mas um latido que provasse que ainda guardava dentro de si desejo de viver, de amar, de se doar... À sua prole. À seu macho. Além de a mim, que recebia dela, gratuitamente, tanta, mas tanta vontade viver.

Mas foi seu treinador quem me olhou. Com olhos impotentes, embora convictos de que sem amor o fim daquela cachorrinha não seria outro que a morte.

Pisquei os olhos e me lembrei, num flash instantâneo, da quantidade de vezes que, na minha infância, vira casais de cachorros cruzando pelas ruas. Sem dar bola pra hora, lugar, tamanho, raça, pedigree e baldes de água fria de vizinhas mal-amadas, mas apenas pra essa coisa, muitas vezes incontrolável, chamada instinto.


2 comentários:

  1. Belíssima crônica, Ju. De uma sutileza e sensibilidade que tal solidão chega a doer em nossas literárias reflexões. Parabéns!

    ResponderExcluir